Por Monique de Sá, repórter da Secult
Criado em 13 de maio de 2009, pela então ministra-chefe da Casa Civil da presidência da República, Dilma Rousseff, o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964 1985) - Memórias Reveladas tem como objetivo estimular a preservação e promover a difusão de informações contidas em acervos referentes às lutas políticas travadas no país durante o período de ditadura, através da busca de fontes documentais, estimulando pesquisas sociológicas, antropológicas, de ciência política e do direito. O projeto surgiu a partir da compreensão de que a memória é um bem público, pertencente à identidade social, política e cultural de um país.
Em Sergipe, o projeto Memórias Reveladas é executado pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult), através do Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Coordenado pelo professor de História, Milton Barbosa, Sergipe, segundo ele, foi o primeiro e único Estado a finalizar a primeira etapa do projeto, que consistiu em fazer o levantamento desses documentos nas delegacias, através da Secretaria de Segurança Pública; fazer o tratamento arquivista - realizando a guarda, digitalizando e publicizando na rede através do site.
“Em nosso estado, temos 783 dossiês de presos. No entanto, por força de uma legislação federal, nenhum pesquisador terá acesso integral a esses documentos. Só quem tem acesso total são os arquivos públicos, ou a própria vítima ou a família dela, em caso de morte. Para um pesquisador comum ter acesso a esses dossiês, ele terá que solicitar uma permissão ao dono do documento, que faz uma procuração facultando o acesso a ele”, explicou Milton.
Milton conta que todos estes procedimentos são necessários por estes documentos não serem constituídos meramente de dados políticos, mas conterem informações especiais. Além disso, os documentos acessíveis na rede constam apenas de seu espelho, ou seja, sua capa. “Esses dossiês não possuem apenas informações como dia em que a pessoa foi presa ou expatriada. Neles constam dados particulares como levantamento da vida pessoal, dados concernentes ao cotidiano das pessoas”, frisou o coordenador.
Entretanto, Milton adiantou que o Governo Federal está se articulando para agilizar um projeto que visa acabar com o sigilo destes documentos e torná-los públicos. “O projeto ainda precisa ser analisado na Comissão de Relações Exteriores antes de ir a plenário. Provavelmente daqui a uns dias, nós teremos aprovado no Congresso Nacional uma legislação chamada Lei do Acesso, facilitando o acesso a essa documentação. Em resumo, a partir da lei qualquer pessoa teria acesso a esses documentos”, sintetizou.
Dossiês em Sergipe
Por questão de lei e por estar sob juramento, Milton Barbosa não pode revelar o conteúdo dos documentos, mas comenta que são documentos textuais, inquéritos realizados por órgãos repressores da época, constando os autos de pergunta, informações pessoais, como também fotografias e imagens. “Qualquer pessoa que o regime militar julgasse ser perigosa ao governo fazia parte dessa rede de investigações, fosse ele político, líder estudantil, jornalista, religioso, empresário, funcionário público, qualquer pessoa”, lembrou.
De acordo com ele, nos documentos não havia indícios de tortura, pois esta não se registra e acabaria sendo uma espécie de documento comprobatório da realidade política da época. “Por ser sobre pessoas eminentes em Sergipe e casos públicos, posso citar alguns nomes que constam em nosso arquivo, como o ex-governador Seixas Dória, o jornalista Luiz Eduardo Costa, o advogado Wellington Mangueira, o vice-governador Jackson Barreto. Toda a geração de 80 para trás está fichada pela DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social)”, contou o coordenador Milton.
O diretor do APES destacou ainda que esses documentos são de suma importância para a história do Brasil, para a memória do povo. “É um resgate de uma era, de um período que não gostaríamos que se repetisse. Sergipe apesar de ser pequeno, tem um quantitativo de prisões muito grande. E, portanto, temos uma documentação riquíssima sobre o período. É através desse espelho que nós coordenamos o Memórias Reveladas, para que a memória de fato nunca seja esquecida e sim revelada”, finalizou.
Próximos passos
Único estado a estar na segunda etapa do projeto, que consiste agora no levantamento de documentos na Universidade Federal de Sergipe (UFS), como também em outras fundações, Milton informou que a culminância do Memórias Reveladas se dará com a criação do Centro de Estudos de Lutas Políticas Sociais de Sergipe. “Temos como perspectiva que daqui a um ano e meio, esta segunda etapa seja finalizada, dando início à criação do Centro, cujo acervo será a documentação da primeira e segunda etapas, mais o acervo de História Oral que nesse momento está no Núcleo de Historia Oral da Universidade Federal de Sergipe”, adiantou o professor.
Na opinião da secretária de Estado da Cultura, Eloísa Galdino, o fato dos trabalhos do ‘Memórias Reveladas’ estarem adiantados em Sergipe é motivo de orgulho. “Nosso Estado foi o primeiro do Brasil a concluir a primeira etapa do projeto Memórias Reveladas e isso demonstra o compromisso da Secult com essa ação de grande importância para o Brasil e para o nosso Estado. Essa é uma ação que dialoga com a preservação da memória do Brasil, do manuseio de documentos da história recente do Brasil. Um período de muita luta e acúmulo político da nossa jovem República. A ditadura militar não pode ser esquecida, para que nunca deixemos de valorizar e viver em plenitude a democracia tão duramente conquistada”, acredita Eloísa.
Histórias de um ilustre conhecido
“A caça às bruxas foi instaurada. Lembro de uma vez em que os censores foram a minha casa e invadiram, procurando livros considerados por eles ‘subversivos’. Lembro que o engenheiro que fez minha casa era muito amigo do meu pai e que por isso mandou fazer uma capa com letras douradas com a sigla: P.C. É claro que eles associaram ao Partido Comunista, mas na verdade aquilo fazia referência ao nome do meu pai: Paulo César. Foi um problema grande, pois minha mãe teve que apresentar a escritura da casa para que se convencessem de que ali não era sede de partido. Eu era chamado continuamente todos os dias para prestar depoimento. Os livros, minha mãe já havia enterrado no quintal”.
Esta é uma das muitas histórias de quem viveu de perto o período da ditadura militar em Sergipe, o jornalista Luiz Eduardo Costa. Para ele, os censores eram pessoas sem instrução que não tinham nenhum conhecimento sobre o que realmente era contrário ao governo. Segundo ele, bastava um livro ter a capa vermelha ou o nome vermelho para ser apreendido.
O jornalista contou que seus amigos e ele eram bastante atuantes e que viu muitos deles serem humilhados pelo governo militar, a exemplo de Wellington Mangueira e sua esposa Rosinha. “Fui editor do jornal Diário de Aracaju, e na época um jornalista escreveu uma matéria sobre oficiais que fizeram levantamentos no terreno de marinha. Só que ao ir para gráfica, a preposição foi trocada e saiu ‘da marinha’. Então o capitão dos portos em Sergipe, Eduardo Pessoa Fontes, ordenou que eu fosse preso. Recordo que os oficiais me levantaram da cama com metralhadoras. Passei um dia preso, até provar que aquilo havia sido um erro gráfico. Foi um constrangimento, uma agressão para mim e minha família que estava presente. Se eles quisessem ter me matado, eles me matariam e ficaria por isso mesmo”, narrou o jornalista.
Sobre o acervo
Administrado pelo Arquivo Nacional, com sede em no Rio de Janeiro e Coordenação Regional no Distrito Federal, o acervo de ditadura militar é constituído por 16.577.194 páginas de documentos textuais, além de 1.363 metros lineares de outros tipos de documentos (mapas e fotografias), 220 mil microfichas e 110 rolos de microfilmes.
Os documentos incluem informações oriundas de vários órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Informações e Contrainformações (SISNI), como por exemplo, os acervos do Serviço Nacional de Informações (SNI), do Conselho de Segurança Nacional (CSN), do Centro de Informações do Exterior (CIEX/Ministério das Relações Exteriores), da Comissão Geral de Investigações (CGI), do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), e por fim, da Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Federal.
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