quinta-feira, 12 de maio de 2011

Bem mais do que um minuto de silêncio


Esta famigerada Bruzundanga foi sempre uma terra pródiga para os poetas e prosadores de veia mais ferina

29/04/2011

Luiz Ricardo Leitão

Esta famigerada Bruzundanga foi sempre uma terra pródiga para os poetas e prosadores de veia mais ferina que se dispõem a retratar em suas obras os absurdos de nossa profunda iniquidade social. Gregório de Matos Guerra, o “Boca do Inferno”, foi decerto o primeiro cronista das mazelas nacionais, denunciando em versos antológicos a perversidade do antigo sistema colonial (“Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado”...).

Depois dele, vieram muitos outros mestres da crítica e do bom humor, traçando com a sua pena cenas e personagens típicos de um regime que veio a nascer sob os signos do descaminho e da trapaça. As Memórias de um sargento de milícias, por exemplo, de Manuel Antônio de Almeida, já nos dão conta da gênese da “malandragem” tupiniquim, na qual o jeitinho é apenas um índice da frustração popular em face das inúmeras expectativas (e promessas) de mudança da realidade social que as elites subscrevem, sem jamais cumpri-las.

Machado de Assis, com as antológicas Memórias póstumas de Brás Cubas, foi outro mestre das letras a desvelar-nos a desfaçatez das classes dominantes: a maneira como o narrador (Brás Cubas) desdenha do leitor, prometendo-lhe contar causos que depois são esquecidos, é uma alegoria perfeita do comportamento das elites da época (e de hoje, também) – que se diziam “liberais”, mas fizeram do Brasil o último país escravista das Américas... E o que dizer de Lima Barreto, o criador de Os Bruzundangas, talvez a sátira mais corrosiva que se tenha escrito acerca da República do café-com-leite? Os políticos, banqueiros e oligarcas daquele país “imaginário” são um retrato irretocável da triste ‘política’ tupiniquim.

As mazelas locais cevaram um sem-número de geniais humoristas no século 20. Aparício Torelly (o autoproclamado Barão de Itararé), nos tempos de Getúlio, e Sérgio Porto (o célebre Stanislaw Ponte Preta), nos conturbados anos de 1960, descreveram como poucos o “Festival de Besteiras que assola o país”. Isso sem falar nos chargistas e caricaturistas que se ocupam das aventuras surreais do Planalto, como a trupe comandada por Chico Caruso, Claudius, Glauco, Laerte, Maringoni e tantos outros, cujos traços fixaram para sempre os desvarios de Collor, PC e outros inomináveis “Filhos da Dinda”...

Sim, há matéria de sobra para a fina ironia do notável prosador Luis Fernando Veríssimo, ou o humor esculachado do cronista José Simão. Afinal de contas, mesmo com o avassalador tsunami do mercado sobre os movimentos sociais, não há como esconder sob os tapetes das oligarquias episódios tragicômicos da vida pública nacional. Por vezes, tudo nos parece sonho (ou pesadelo) – que o diga a tchurma do Congresso: Netinho quer criar a Comissão dos Direitos da Mulher, Tiririca foi designado para a Comissão de Educação e Bolsonaro integra a Comissão de Direitos Humanos da Câmara... Devemos rir ou chorar?

Enfim, eu deveria estar aqui debochando dessa corja, mas confesso ao leitor que a tragédia de Realengo me calou a veia ferina. Creio que todos nós carecemos de bem mais que um minuto de silêncio para refletir sobre o significado desse episódio. Penso em meus colegas professores, cujos salários mal dão para comprar um livro ou assistir a uma boa peça teatral, literalmente sitiados em suas salas de aula, improvisando barricadas para evitar a morte de seus alunos – e percebo o quanto estamos distantes do mundo cor de rosa que playboys como Cabral, Aécio (o cacique moderninho que se recusou a fazer o teste do bafômetro) & Cia. pintam em suas comarcas. Olho para a foto do “atirador” e não teço nenhum juízo – penso apenas na euforia dos fabricantes de armas, uma das faces mais perversas do capital, e nos frutos aziagos da Paideia audiovisual de Hollywood, com suas chacinas em série nas telas de TV (sub)urbanas. Haveria muito mais a dizer, mas creio que o melhor, hoje, é apenas silenciar – e pensar...

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Publicado originalmente na edição impressa 425 do Brasil de Fato


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