O piloto e o passageiro
(11.7.2008)
por Braulio Tavares
Ouvimos falar o tempo inteiro em “nossa identidade cultural”. A
identidade cultural dos brasileiros, dos nordestinos, dos
paraibanos... Mas como estabelecer essa identidade sem aprisioná-la
para sempre numa dessas receitas do tipo “é assim e não pode ser
assado”? Ou eu tento privilegiar o que acredito ser, tento ser fiel
a essa essência – e neste caso me furto a interagir com o mundo, para
não aceitar transformações; ou aceito essa interação e corro o risco
de, no minuto seguinte, deixar de ser o que sou agora. É um pouco
como, na Física, o famoso “Princípio da Incerteza”: ou sabemos a
posição de uma partícula, mas desconhecemos sua velocidade, ou sabemos
com que velocidade ela se move, mas nunca sabemos onde está.
Talvez possamos atenuar esse problema se virmos a identidade não como
uma coisa sólida, de contornos claros e definidos, mas como uma
trajetória através dos fatos. Não um ponto estático, mas uma linha
que se alonga. Identidade não é a posição em que estamos, mas o modo
como nos movemos através dos fatos e a trajetória que esse movimento
acaba desenhando. É impossível conhecer alguém por dentro, conhecer
“a coisa em si”. Mas podemos observar, de fora, como esse alguém se
comporta, como se movimenta através do tempo, suas mudanças de rumo,
suas correções de percurso. E a rota traçada por esse alguém é que
seria sua verdadeira identidade.
Eu nunca andei de bicicleta; tenho um medo danado de me fazer em
pedaços no primeiro poste que aparecer. Mas, se nunca pilotei
bicicleta, já andei muito nelas, pegando carona, sentado no
bagageiro. E não só de bicicleta, mas mobilete, moto, etc. E uma
coisa que eu ficava observando (para me distrair do medo de morrer)
era a enorme velocidade com que estávamos sendo propelidos através da
paisagem, e a tranqüilidade sem fim com que o meu amigo, encarregado
da pilotagem, “negociava” o percurso: rodeando automóveis, abrindo
curvas largas quando o espaço permitia, dando freiadinhas bruscas ao
se aproximar de um sinal ou de um obstáculo, atenuando o vácuo na
descida dos viadutos, inclinando o corpo em 45 graus nas curvas mais
fechadas...
Pensar em identidade como uma coisa estática é coisa para passageiro,
para quem está sendo levado pelos outros, passivamente, relaxadamente,
sem o compromisso de salvar a própria vida a cada metro. Para os
“agentes sociais” (valha o termo!) identidade é esse percurso que se
constrói com atos privados e públicos, tomadas de decisões, adoção de
estratégias. A identidade não é uma descrição fixa de quem somos, é
uma soma das decisões que tomamos e das responsabilidades que
assumimos, e pode ser aferida através do trajeto que percorremos.
Identidade não é uma coisa – a “coisa”, no caso, somos nós.
Identidade é o trajeto escolhido por essa “coisa” ao longo da vida, é
o trajeto que nos dá pistas (sempre indiretas, claro) sobre o que há
dentro do interior inacessível dessa coisa chamada gente.
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