quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Terra, território e diversidade cultural

Ministério da Cultura - Juca Ferreira e Sérgio Mamberti
Fonte:www.cultura.gov.br

Não faz mais sentido opor o tradicional ao moderno, como se este último fosse melhor e mais avançado do que o primeiro

O voto do ministro Carlos Ayres Britto sobre a reserva Raposa/Serra do Sol evidencia a oportunidade de deixarmos para trás os resquícios de uma mentalidade colonial e termos um avanço histórico, rumo a uma política contemporânea que contemple o diálogo produtivo entre as diversas etnias e culturas que compõem um país de dimensões continentais como o Brasil. O voto deixa claro, ainda, que o respeito ao espírito e à letra da Constituição de 1988 é o caminho.

O relator trouxe à luz o direito inalienável e imprescritível dos índios de viver nas terras que tradicionalmente ocupam e de acordo com suas próprias culturas. Trouxe, também, o valor de sua contribuição na formação da nacionalidade brasileira.

O ministro mostrou que a afirmação das culturas dos primeiros enriquece a vida de todos nós. Basta lembrar o quanto sua relação positiva com a natureza tem ajudado na existência da floresta e da megadiversidade brasileira como um todo. Quem convive com eles sabe que os indígenas cooperam com as Forças Armadas para proteger a floresta de usos ilegais e ajudam no monitoramento das fronteiras.

Dois pontos, entre vários outros relevantes abordados pelo voto do ministro, merecem destaque por suas implicações para a cultura brasileira. Em primeiro lugar, a distinção entre terra e território, que expressa a maneira sofisticada e inovadora por meio da qual a Constituição de 1988 solucionou juridicamente a relação entre as sociedades indígenas e o ambiente em que vivem.

É sabido que a terra não pertence aos índios; antes, são eles que pertencem à terra. Por isso mesmo, a Carta Magna, reconhecendo a anterioridade dessa relação ao regime de propriedade, concedeu-lhes o usufruto das terras que ocupam, atribuiu o pertencimento delas à União e conferiu ao Estado o dever de zelar pela sua integridade. A Constituição de 1988 selou a convivência harmoniosa entre duas culturas, uma que reconhece e outra que não reconhece a apropriação da terra pelos homens.

O segundo ponto refere-se à relação entre terra e cultura, que concerne à continuidade do território ou sua fragmentação em ilhas. Quem conhece a questão indígena no Brasil sabe que o rompimento da integridade territorial implica a morte do modo de vida e, portanto, da cultura e do modo de ser do índio.

Se, em séculos passados, acreditou-se que os índios eram um arcaísmo, não é mais possível nem tolerável sustentar tal ponto de vista no século 21. Não só porque no mundo todo cresce a convicção da importância dos povos tradicionais para o futuro da humanidade, precisamente em virtude de sua relação específica com a terra e a natureza, mas também porque a sociedade do conhecimento, acelerada construção, não pode prescindir da diversidade cultural para seu próprio desenvolvimento.

Na era da globalização, da cibernetização dos conhecimentos, das informações e dos saberes, não faz mais sentido opor o tradicional ao moderno, como se este último fosse melhor e mais avançado que o primeiro. Com efeito, proliferam na cultura contemporânea, de modo cada vez mais intenso, os exemplos de processos, procedimentos e produtos que recombinam o moderno e o tradicional em novas configurações.

Se a China e a Índia hoje surgem no cenário internacional de modo surpreendente, é porque sabem articular inovadoramente a cultura ocidental moderna com seus antiqüíssimos modos de pensar e agir, demonstrando que o desenvolvimento não se dá mais em termos lineares e que o futuro não se desenha desprezando e recalcando o passado.

Por isso, o Brasil -cuja singularidade se caracteriza tanto por sua megadiversidade biológica quanto por sua grande sociodiversidade e rica diversidade cultural-, precisa urgentemente reavaliar esse patrimônio. Temos trabalhado com os povos indígenas no Ministério da Cultura e promovido a diversidade cultural como valor e expressão de uma democracia mais plena, em que cenas como a defesa da advogada indígena Joênia Batista de Carvalho Wapichna se tornem mais que exceções históricas.

A soberania não se constrói com fantasmas nem paranóias, mas com a atualização de nossas forças e nossos potenciais. O ministro Ayres Britto tem razão ao sublinhar que não precisamos de outro instrumento jurídico além da Constituição de 1988.

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