terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

NOVAS TECNOLOGIAS तेक्नोलोगिअस Morte e vida fonográfica

]Fonte: www.overmundo.com.br
Neste começo de 2009, fim da primeira década do século XXI, dois livros antagônicos e complementares (por mais estranho que isso possa parecer) vieram parar na minha mão. "300 discos importantes da música brasileira" é de Charles Gavin com co-autoria de Tárik de Souza, Carlos Calado e Arthur Dapieve e tem objetivo explícito de "preservação de memória de um período da produção gráfica e fonográfica". É um livrão daqueles estilo coffee table book, fartamente ilustrado e com tamanho real de LP e muitas páginas, patrocinado pela Petrobras e publicado pela Editora Paz e Terra. A renda das vendas vai ser revertida a projetos de interesse público. "O futuro da música depois da morte do CD", organizado por Irineu Franco Perpetuo e Sergio Amadeu, conta com artigos de gente diversa e está disponível para download gratuito. Descobri sua existência ao acessar o Twitter do André Stangl, um de seus autores, onde havia um relato de sua experiência na Campus Party – o livro foi lançado lá. Link à mão, cheguei à obra.

Não existe a menor intenção em comparar dois livros incomparáveis. Mas, enquanto ia lendo os dois mais ou menos ao mesmo tempo – um na tela do computador e o outro, bem, o outro não foi feito bem para ser lido de vez, e sim degustado, apreciado, consultado – fui percebendo como havia ali uma complementariedade curiosa. "300 discos" tem cara de almanaque, até mesmo de reverência ao passado, e se remete, pelo nome e pelo tamanho (exatamente igual ao de uma capa da época) ao LP. Sim, long-play, aquele formato anterior ao CD – que já morreu, avisa o título provocativo do outro livro, por sinal uma ode ao futuro completamente diferente que se aproxima. Que tempos são esses em que vivemos, afinal?

O primeiro livro é um apanhado feito por alguns dos críticos e especialistas mais reconhecidos no país do que houve de relevante na música brasileira entre 1929 e 2007 – época em que só ficava registrado para a posteridade "oficial" o que era gravado e lançado comercialmente pela indústria fonográfica, com raras exceções. Em geral, vejo com alguma desconfiança essas obras com listagens querendo definir o que deve ser lembrado ou não. Mas me convenci do valor deste livro folheando suas páginas com belas fotos e informações preciosas, como trechos de entrevistas que Tárik que Souza fez com músicos ao longo das décadas (sem contar os dois discos que vêm de brinde, os de Moreira da Silva e de Elza Soares, respectivamente de 1958 e 1968). Valorizei também, possivelmente, por estar em leitura concomitante com o outro livro, que fala da falência do modelo de álbum, da invenção da figura do autor, da decadência das majors que lançaram boa parte dos 300 discos escolhidos ali.

Quando começou a onda do MP3, uma das questões mais instigantes na minha cabeça foi o iminente fim da ideia de álbum. Curtia imaginar o músico pensando numa obra completa, num conjunto de músicas que fizessem um sentido juntas. Foi interessante ler no "livro-túmulo do CD" como essa questão gera opiniões divergentes. No artigo de Alice Tomaz de Carvalho e Riverson Rios, "O MP3 e o fim da ditadura do álbum comercial", está dito: "As pessoas parecem não querer mais ter de pagar por uma seqüência de canções imposta previamente, como acontece em um CD, representando assim uma negação à ditadura do álbum comercial". Vão além, com um exemplo que me deixou intrigada:

"Mesmo nos casos de canções que têm uma continuidade lógica dentro de um mesmo álbum (como, por exemplo, as músicas do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Clube Band, lançado pelos Beatles em 1967), não há nada que necessariamente as prenda juntas, na mesma ordem do álbum, após serem transformadas em MP3".

É verdade. Mas será que as músicas do Sgt. Pepper's teriam sido tão celebradas se lançadas separadas? É claro que não dá para ficar fazendo passado-futurologia barata, mas taí um exemplo de álbum que é significativo por seu conjunto... O músico André Mehmari expressa seu desconforto com o fim do modelo (que provavelmente ele não vê como uma ditadura, mas como algo que faz sentido para sua produção), num artigo de nome sugestivo, "O mundo mudou bem na minha vez":

"Acho que [a venda de música faixa-a-faixa] fere a integridade do álbum-­obra, como um livro com seus capítulos. Cada disco meu é como um livro que escrevi: não se deve alterar a ordem dos capítulos ou suprimir um ou outro. (...) Esse conceito é derivado do velho single, mais associado (mas não somente) à música pop, que "pega", que vira hit. Não tem muita relação com a música que eu e tantos colegas fazemos. Quero ter o direito de não ter meu álbum esquartejado e vendido (a preço, literalmente, de banana) em pedacinhos."

Está claro, para mim, que ninguém está certo ou errado. Como em toda fase de transição, as pessoas vão se agarrando em suas verdades, e todas são possíveis, pois dependem de suas vivências. Como o próprio Mehmani afirma, "as mídias vêm e vão, a música segue seu virtuoso caminho de mais de mil anos..."

É afinado com a ideia desta última frase que está o argumento de um dos artigos mais interessantes do livro, "A música na época de sua reprodutibilidade digital", de Sergio Amadeu. O título fazendo referência ao famoso texto de Walter Benjamin não é só uma gracinha: se o filósofo alemão afirmou que o diferencial da obra de arte está na unicidade, Amadeu observa que no mundo digital muita coisa pode mudar. "Música não depende de suporte exclusivo, tem características de todo bem imaterial: ausência de escassez e de desgaste de uso. A cópia e a disseminação não prejudicam o original. É preciso separar os bens informacionais dos suportes que o carregam".

Sendo assim, uma confusão proposital entre suporte e objeto teria sido criada pela mesma indústria que lucrou com a uniformização de gostos e massificação de estilos. Essa seria a maneira de controlar os produtos e negar acesso a eles de quem não estivesse autorizado. Acontece que, nas redes digitais, esse controle é cada vez mais difícil.

Boa parte dos artigos procura abordar este momento de indústria em decadência e novos modelos (e cabeças pensantes) despontando. Alguns fazem uma valiosa reconstituição histórica, seja do comportamento da indústria ("O impacto da tecnologia na cadeia da música: novas oportunidades para o setor independente", de João Leão e Davi Nakano), seja dos formatos de suportes de todos os tempos (Harry Crowl em "A criação musical erudita e a evolução das mídias: dos antigos 78rpm à era pós-CD"). André Stangl e Reinaldo Pamponet, por sua vez, discutem o valor da música para além desses suportes.

Há espaço para análises mais específicas. Laan Mendes de Barros exemplifica como Banda Larga Cordel, projeto do ex-ministro Gilberto Gil, integrou os fãs ao disco via internet. Adriana Amaral explica a relevância de redes sociais como o MySpace e o Last.fm neste novo cenário. Há ainda uma reflexão muito interessante de Ricardo Bernardes mostrando que a nova tecnologia é útil e relevante não só para bandas novas e DJs antenados. Seu "Músicas antigas e mídias modernas" mostra como o registro e a disseminação de músicas coloniais (ou de outras épocas pré-gravação) pode e deve se aproveitar dessas novas redes. "A que público e com quais expectativas essa música se destina hoje? Qual o papel das novas mídias no processo de divulgação menos carregada ideologicamente desse repertório? Com a "morte" do CD, como gerir a versão que será divulgada desse passado musical?"

A pergunta procede para qualquer tipo de música. Enquanto penso sobre ela, folheio a bíblia dos 300 discos, ouço o Kid Morengueira (num aparelho de som que para muitos já está obsoleto) e vou me preparando para o futuro que já está aí.

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