quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

DOSSIÊ FSM 2009 01 (ADITAL)

Abaixo, apresentamos uma seleção de noticias sobre o FSM 2009, publicada no site www.adital.com.br
Outras textos referentes ao assunto poderão ser encontrado lá também.
Esperamos com isso, ajudar a divulgar opiniões/análise/vivências sobre o FSM 2009, do qual tiver a honra de poder participar.
Em breve, publicaremos texto com as nossas impressões pessoais.






















François Houtart: Balanço e perspectivas do Fórum Social Mundial




Esteban Velásquez, sj *
Fonte: Adital
François Houtart, padre, licenciado em Filosofia, Teologia, Ciências Políticas e Sociais, doutor em Sociologia, co-diretor do Fórum Mundial das Alternativas junto com o economista Samir Amin e professor emérito da Universidade Católica de Lovaina é uma das principais referências do Fórum Social Mundial (FSM) e de cujo Conselho Internacional faz parte desde a sua fundação. É um dos membros do Conselho que goza de uma aceitação mais generalizada.
Um grande grupo de jesuítas reunidos em Belém, no Pré-Fórum Fé na Amazônia, e que depois participaram do Fórum Social Mundial 2009, entrevistou François Houtart.
Ele concedeu a entrevista a Esteban Velásquez e que foi publicada pelo sítio Pré Forum Fé na Amazônia, 11-02-2009. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Aspectos positivos a ressaltar do FSM de Belém
Avanço no amadurecimento de um pensamento e de uma análise coletiva. Avanço, portanto, na construção de uma consciência coletiva. Há um processo, não um estancamento, nesse sentido, ainda que nem sempre seja perceptível e ainda que a legítima e necessária diversidade possa parecer a alguns que obscureça esse avanço da consciência coletiva. Os fóruns não partem do zero em cada nova edição e se produzem convergências importantes sem anular a diversidade. Diríamos que a "infraestrutura mental e coletiva" dos movimentos sociais alternativos do mundo deu outro passo importante, em Belém, talvez ajudados por uma crise mundial de grandes proporções que, como poucas vezes, provavelmente como nunca, colocou em dúvida o sistema capitalista neoliberal, que o FSM rechaça e para o qual trata de buscar alternativas desde a sua criação, em 2001. Diríamos que nesta ocasião as circunstâncias históricas jogaram a favor do FSM e do aglutinamento dos movimentos sociais que o compõem tanto em sua consciência como em suas estratégias de ação.

Incorporação de novas gerações que assumem responsabilidades no Fórum com naturalidade e maturidade. Jovens que têm em sua maioria, segundo François, um caráter ou perfil nitidamente popular. A maioria clara de jovens no Fórum de Belém é um fato reconhecido por todos. Mas a avaliação positiva destes jovens não é tão compartilhada nem tão evidente para muitos, mas o é para Houtart. Ele nos negava a objetividade da apreciação que alguns fazem de uma juventude folclórica e menos política que em edições anteriores do Fórum. Pelo contrário, ele acredita que é uma juventude mais consciente, responsável e madura que se sente mais integrada ao FSM, seus objetivos e responsabilidades. Por outro lado, François acredita que há um interesse premeditado de parte da imprensa mundial para mostrar essa imagem "hippie" e folclórica dos jovens no Fórum. Imagem que, para ele (no auge dos seus 83 anos), não corresponde à realidade.

Construção de novas redes de trabalho como, por exemplo, as novas conexões da Via Campesina e outras redes mais recentes. Na conversa, não deu tempo para aprofundar essas novas redes. Revalorização da ação política como um instrumento necessário da ação transformadora alternativa. Depois de um tempo de certo desprestígio mútuo entre o instrumento mais implicitamente político e o dos movimentos sociais da chamada sociedade civil, parece que em Belém houve um avanço importante na aproximação e na avaliação de sua complementaridade. O Fórum reconhece mais o avanço que traz a ação explicitamente política em certas coordenadas de clara busca de alternativas ao sistema neoliberal e, por sua vez, o mundo do trabalho desde as estruturas de poder político que procura ser, com maior ou menor êxito, anti ou altersistema, reconhece a necessidade do FSM renunciar a propósitos de instrumentalização do mesmo. Para Houtart, a presença de cinco presidentes latino-americanos no Fórum e a maneira como se deu são uma clara expressão desta mútua valorização sem instrumentalização.

Aspectos negativos a ressaltar do FSM de Belém
Muita fragmentação das oficinas. 2.500 oficinas são demais não só pelo número, mas pelos propósitos, analisando uma ou muitas delas, sua temática nem sempre tem a ver com os propósitos e objetivos do FSM. Além disso, há o fato de que o país anfitrião oferece uma porcentagem desproporcionalmente elevada de oficinas. Por outro lado, tal fragmentação não favorece a criação de condições propícias para um maior debate coletivo. Neste sentido, Houtart apóia a proposta de uma das assembleias do último dia no sentido de que se diminuísse o número de oficinas e aumentasse o número de assembléias temáticas, como aconteceu, pela primeira vez na história dos Fóruns, no último dia deste Fórum de Belém quando, em vez de oficinas, foram realizadas cerca de 30 assembléias temáticas. Em comunicação por e-mail posterior ao Fórum, Houtart nos dizia que ele havia proposto ao Conselho Internacional (que sempre se reúne nos dias imediatamente posteriores ao Fórum) que no próximo Fórum houvesse um dia a mais reservado às assembléias, em vez das oficinas. Isso significaria que a metade dos dias do Fórum seria para assembléias e a outra metade para oficinas. Também nos comunicava que todos os coletivos do Conselho Internacional haviam respaldado as conclusões das 30 assembléias do último dia. Logicamente, o respaldo é em nome dos coletivos ali presentes e não como FSM que, como sabemos, não pode ter conclusões próprias dos debates ocorridos no Fórum.

No aspecto logístico, Houtart considerava que a grande separação existente entre as duas sedes do FSM (as duas Universidades: UFPA e UFRA) não facilitou a participação nas oficinas e atividades. Também considerava um erro convocar a marcha do primeiro dia para as 15h. Não é a melhor hora para favorecer a participação, mesmo que fosse, apesar disso, muito numerosa.

Algumas considerações para o futuro
Continua sendo básico manter o caráter do Fórum como lugar de encontro e de sinergias. Seguir resistindo, portanto, à tentação que reaparece uma ou outra vez de converter o Fórum num lugar para elaborar conclusões próprias e uma estratégia comum. O Fórum favorece que haja essas conclusões e estratégias, mas não pode dar sua "patente" às mesmas, como tal Fórum. Já sabemos disso, mas, segundo Houtart, continua sendo necessário manter. Por outro lado, este lugar de encontro em nível mundial continua sendo muito útil. Houtart não compartilha, nesse sentido, de algumas análises pessimistas do Fórum por não tirar conclusões políticas do mesmo, como recentemente expressou, por exemplo, Emir Sader, um dos conhecidos analistas do Fórum, a propósito do Fórum de Belém.

Contudo, é preciso realizar um esforço maior de coerência nos conteúdos transmitidos nas atividades e oficinas do Fórum. E, nesse sentido, recordava Houtart uma metáfora utilizada por Susan George ao falar da falta de coerência, rigor e solidez dos conteúdos de muitos movimentos sociais: "é como se estivéssemos dançando no Titanic". Há avanços na consciência coletiva, mas falta coerência e rigor nesse pensamento coletivo para estar à altura da gravidade e transcendência das situações que vivemos.

Por último, François considera que no Conselho Internacional alguns setores (especialmente Ongs e setores de procedência religiosa) devem superar um certo particularismo ou sectarismo ao tentar descomedidamente levar adiante seus objetivos particulares acima de objetivos mais coletivos, gerais e globais. Neste sentido, Houtart coincide com a forte crítica que faz o já citado Sader, e outros, ao papel das Ongs no FSM.

A nossa conversa com Houtart terminava com a análise do papel da recém criada Comissão das Nações Unidas para preparar a futura Cúpula do G-20 sobre a crise mundial. Houtart é membro dessa comissão na qualidade de representante pessoal do atual Presidente da Assembléia Geral, Miguel d'Escoto. A comissão é presidida pelo Nobel de Economia Joseph Stiglitz e é composta pelo ex-ministro e economistas de reconhecido prestígio. Para Houtart, esta comissão representa o melhor que pode o esforço de auto-ajuste e autocorreção do sistema capitalista dominante no mundo, mas que está longe de representar uma esperança de mudança alternativa a esse sistema. Para Houtart, seu conhecimento interno dessa Comissão de alto escalão o confirma ainda mais na necessidade de alimentar esperanças, sonhos, sinergias e possibilidades reais de que outro mundo é hoje mais do que nunca urgente e necessário.

[Fotos de Luis Carlos Díaz
Enviado pelo IHU]

16.02.09 - MUNDO

Novos valores para nova civilização

Frei Betto *
Adital -
No Fórum Social Mundial de Belém se concluiu que as alternativas ao neoliberalismo e à construção do ecossocialismo não se engendram na cabeça de intelectuais ou de programas partidários, e sim na prática social, através de lutas populares, movimentos sindicais, camponeses, indígenas, étnicos, ambientais, e comunidades de base.
Para gestar tais alternativas exigem-se pelo menos quatro atitudes. A primeira, visão crítica do neoliberalismo. Este aprofunda as contradições do capitalismo, na medida em que a expansão globalizada do mercado acirra a competição comercial entre as grandes potências; desloca a produção para áreas onde se possa pagar salários irrisórios; estimula o êxodo das nações pobres rumo às ricas; introduz tecnologia de ponta que reduz os postos de trabalho; torna as nações dependentes do capital especulativo; e intensifica o processo de destruição do equilíbrio ambiental do planeta.


A segunda atitude - organizar a esperança. Encontrar alternativas é um trabalho coletivo. Elas não surgem da cabeça de intelectuais iluminados ou de gurus ideológicos. Daí a importância de se dar consistência organizativa a todos os setores da sociedade que esperam outra coisa diferente do que se vê na realidade atual: desde agricultores que sonham lavrar sua própria terra a jovens interessados na preservação do meio ambiente.

Terceira atitude - resgatar a utopia. O neoliberalismo não visa a destruir apenas as instâncias comunitárias criadas pela modernidade, como família, sindicato, movimentos sociais e Estado democrático. Seu projeto de atomização da sociedade reduz a pessoa à condição de indivíduo desconectado da conjuntura sócio-política-econômica na qual se insere, e o considera mero consumidor. Estende-se, portanto, também à esfera cultural. Como diria Emmanuel Mounier, o individualismo é oposto ao personalismo. Pascal foi enfático: "O Eu é odioso".

No seu apogeu, o capitalismo mercantiliza tudo: a biodiversidade, o meio ambiente, a responsabilidade social das empresas, o genoma, os órgãos arrancados de crianças etc, e até mesmo o nosso imaginário. Um exemplo trivial é o que se gasta com a compra de água potável engarrafada em indústria, dispensando o velho e bom filtro de cerâmica ou mesmo a coleta da limpíssima água da chuva após um minuto de precipitação.

Sem utopias não há mobilizações motivadas pela esperança. Nem possibilidade de visualizar um mundo diferente, novo e melhor.

Quarta atitude - elaborar um projeto alternativo. A esperança favorece a emergência de novas utopias, que devem ser traduzidas em projetos políticos e culturais que sinalizem as bases de uma nova sociedade. Isso implica o resgate dos valores éticos, do senso de justiça, das práticas de solidariedade e partilha, e do respeito à natureza. Em suma, trata-se de um desafio também de ordem espiritual, na linha do que apregoava o professor Milton Santos, de que devemos priorizar os "bens infinitos" e não os "bens finitos".

O projeto de uma sociedade ecossocialista alternativa ao neoliberalismo exige revisar, a partir da queda do Muro de Berlim, os aspectos teóricos e práticos do socialismo real, em particular do ponto de vista da democracia participativa e da preservação ambiental.

O ecossocialismo se caracterizaria pela capacidade de incorporar conceito e práticas de igualdade social e desenvolvimento sustentável a partir de experiências dos movimentos sociais e ecológicos, assim como da Revolução Cubana, do levante zapatista do Chiapas, dos assentamentos do MST etc.

É vital incluir no projeto e no programa os paradigmas ora emergentes, como ecologia, indigenismo, ética comunitária, economia solidária, espiritualidade, feminismo e holística.

Este sonho, esta utopia, esta esperança que chamamos de ecossocialismo, não é senão a continuação das esperanças daqueles que lutaram pela defesa da vida, como Chico Mendes e Dorothy Stang, dois lutadores cristãos que deram suas vidas pela causa dos pobres, dos explorados, dos indígenas, dos trabalhadores da terra e dos povos da floresta.

[Autor de "Cartas da Prisão" (Agir), entre outros livros].


Fórum. Depois que ele passou

Lúcio Flávio Pinto *
Adital -
Foi uma façanha sediar em Belém a nona versão do Fórum Social Mundial, trazendo a solidariedade do mundo para a Amazônia. O que ficou realmente dessa iniciativa? É a pergunta que fica. Uma das poucas coisas que ficam.
Belém é uma das capitais com os mais baixos índices per capita de verde do Brasil, embora fique na porta de entrada da Amazônia, reduto de um terço das florestas tropicais do planeta. As mais extensas áreas verdes remanescentes da cidade estão nos campi das duas universidades federais, a Ufra e a UFPA, que abrigaram, durante uma semana, a nona edição do Fórum Social Mundial, encerrada no dia 1º. Esses bosques estão cercados por dois dos bairros mais populosos e perigosos da cidade, o Guamá e a Terra Firme, com 10% dos 1,4 milhão de habitantes de Belém e uns 15% da sua criminalidade.


O Guamá cresceu recebendo migrantes do interior, expulsos de suas terras nativas pela chegada dos novos colonizadores. Eles trouxeram consigo fazendas de gado, serrarias, plantios agrícolas e mineração, principais causadores da maior destruição de floresta da história da humanidade (o equivalente a três vezes a extensão de São Paulo em apenas quatro décadas). A Terra Firme inchou com miseráveis pensões que ali foram instaladas para receber trabalhadores braçais, os peões, arrebanhados por "gatos", intermediários da mão-de-obra usada para desmatar as áreas onde antes moravam os caboclos, urbanizados pelo deslocamento à força de suas roças.

Na Terra Firme foram realizadas reuniões preparatórias para o Fórum e até uma entidade foi organizada entre os moradores para dar consistência à sua participação. Mas o propósito foi esvaziado pela ausência do pessoal de apoio de ONGs e instituições, que estimularam a iniciativa. E a participação ficou impossibilitada pela taxa de inscrição, de 30 reais, que ninguém podia pagar.

O Fórum não discutiu nenhum dos problemas das enormes e caóticas periferias de Belém, que tem aquela que era considerada a maior favela horizontal do país, o Paar (com 140 mil habitantes), e que aparece como a segunda capital - proporcionalmente à população - mais violenta do Brasil, abaixo apenas de Recife. Nem os problemas dos dois bairros vizinhos, que, por ironia, durante a semana do Fórum, motivaram uma polêmica pela internet a partir do comentário desdenhoso de uma colunista social de domingo do jornal do grupo de comunicação que domina a mídia local entre os mais abonados membros da sociedade paraense, O Liberal.

O encontro temático internacional, realizado em Belém justamente para dar ênfase à "questão amazônica", a que mais polêmica provoca na agenda ambiental de hoje, não conseguiu cruzar o cinturão policial que o isolava dos dois temidos bairros, em cujos limites estão alguns dos pontos negros da cidade. Restou então aos bairros ir às montanhas de gente estranha e de acontecimentos inusitados. Não para participar das centenas de eventos programados para o Fórum nem para usufruir a relação com os visitantes categorizados, mas para lhes vender alguma coisa e faturar uma receita extra. Com uma forte razão: Belém é das capitais brasileiras com a maior economia informal e um dos mais elevados índices de desemprego. Boa parte dos seus moradores vive de biscates ou trabalha sem relação de emprego estável. Um contingente cada vez mais numeroso já transpôs o portal da informalidade para a criminalidade, aberta ou disfarçada, com poucas possibilidades de retorno.

Nos dias que antecederam a inauguração oficial do FSM, os moradores atravessaram como puderam o muro que isola os campi das duas universidades com suas mesas, cadeiras, pratos, colheres e comidas para oferecer ao público, desprovido desses serviços em condições satisfatórias ou na quantidade necessária. Depois, com o aumento da vigilância nos muros e nas poucas áreas de acesso (o debate era livre, mas o ingresso era super-controlado), os interessados começaram a roubar, principalmente os dois mil voluntários que circulavam entre os campi, o da Universidade Federal do Pará e o da Universidade Federal Rural da Amazônia.

Primeiro roubavam os crachás, que, em seguida, adulteravam, para poder vencer a fiscalização e entrar com suas comidas e guloseimas. Passaram também a tomar as camisas, outro elemento de controle na entrada (algumas foram vendidas pelos próprios voluntários, sem dinheiro até para o ônibus). E assim a periferia da metrópole da Amazônia tirou vantagens do acontecimento do ano, que teria reunido, segundo seus organizadores, 130 mil pessoas, número que as sobras de milhares de camisas, muitas nem tiradas da caixa, punham em questão para quem pudesse ver por dentro o que acontecia.

Graças à conjugação da necessidade de alimentação das mais de três mil pessoas que acamparam nos campi e dos milhares de outras que circulavam pelos locais durante o dia, houve uma ligação entre a bolha de solidariedade e de confiança em um mundo melhor, e aqueles que deviam ser a materialização física dessas utopias, os excluídos da globalização em carne e osso. O Guamá e a Terra Firme foram duas das mais angustiantes preocupações do governo, o sujeito oculto na oração de independência do FSM (como a contrafação à tertúlia dos ricos em Davos), e dos organizadores.

O governo federal, do PT, deslocou 300 homens da Força Nacional e destinou R$ 50 milhões (dos R$ 160 milhões do orçamento global) ao item específico da segurança. O governo estadual, também sob o controle do PT, concentrou sete mil homens das duas polícias (a militar e a civil) em Belém e montou um cordão sanitário em torno dos dois bairros limítrofes para proteger os convivas do Fórum da rotina de 200 ocorrências criminais diárias (60% delas na forma de crimes contra o patrimônio, mais de dois terços deles com o uso da violência). Milhares de moradores foram parados e revistados todos os dias pelas patrulhas móveis, os bares tiveram que fechar às 10 horas da noite e um clima de confinamento foi imposto. O cotidiano experimentou uma metamorfose súbita, ainda que efêmera.

Graças a essas providências, a violência não se imiscuiu no ambiente do Fórum durante a semana da sua realização. Isolados dessa maneira, os participantes do monumental encontro puderam desenvolver sem contratempos suas idéias e propostas sobre a construção de um mundo melhor e uma Amazônia auto-sustentável. A realidade incômoda, que havia antes, poderá voltar a se instalar agora que profetas, gurus, discípulos e todas as pessoas de boa vontade voltaram para suas casas. Carregando consigo as mesmas idéias e imagens que trouxeram para Belém.

Não há dúvida que o FSM trouxe a Belém gente de alta capacidade intelectual, com um currículo poderoso, disposta a aplicar suas qualidades para a construção de um futuro melhor para o planeta e, particularmente, para a Amazônia. Poucos, porém, vieram para ouvir o que a própria região tem a dizer. Muitos têm dedicado seu tempo a estudar a Amazônia, mantendo uma atitude constante de alerta em relação ao que nela acontece a partir dos seus terminais eletrônicos, conectados a satélites, acessando bancos de dados, cruzando informações, montando teias de argumentos e produzindo conclusões sobre o que ocorre no castigado solo amazônico. Parece, contudo, que esse mundo digital é tão fascinante que dispensa seus freqüentadores de ir lá fora e ver os acontecimentos reais. Os personagens vivos dessa história que dêem conta dos seus dramas e problemas sem as tonalidades desse novo idealismo tecnológico.

O Fórum passou como a banda pela janela da moça que Chico Buarque de Holanda colocou na sua música de maior sucesso, quatro décadas atrás. Num dos muitos versos expressivos, ele observou: "A minha gente sofrida/ despediu-se da dor/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor". O amor se foi, o sofrimento ficou. Assim é a vida, que invade e contamina o mundo virtual, tirando-lhe a virtude, como tem que ser.

Atrás dos números

O Fórum Social Mundial foi uma criação positiva. Em sua nona versão, ele demonstrou a necessidade de quebrar o monopólio de fazer e escrever a história, exercido pelos ricos e poderosos. Mas desnuda também a dificuldade - quase impossibilidade - de criar uma contrafação radical ao meeting que os oito grandes realizam em Davos. Em boa medida, o FSM é a outra face da moeda dos estereótipos e manipulações do G-8. Falta-lhe a capacidade de confrontar-se com a realidade e ser-lhe fiel, purgando-a das manobras de efeito e da manipulação.

No balanço final do encontro de Belém, os organizadores do fórum recorreram aos números para conferir-lhe grandeza fictícia e qualidade exagerada. Proclamaram que 133 mil pessoas de 142 países se inscreveram para o evento. Sem pôr o número em questão, qual foi a participação? Por que sobraram tantas camisetas confeccionadas para os inscritos, muitas sem sequer sair das caixas, se elas foram um regalo disputado?

Dos 133 mil participantes, menos de seis mil (ou nem 5%) eram de fora do Brasil, dois terços deles nossos vizinhos sul-americanos. As estatísticas discriminaram as procedências estrangeiras, mas não as do próprio Brasil nem as da Amazônia ou do Pará. Falha inadvertida ou proposital? A informação talvez nos levasse a concluir que muitos dos especialistas ou candidatos a salvadores da Amazônia prescindem dos nativos para desempenhar sua missão. Vieram até aqui mais para nos ditar regras do que tentar ouvir a voz local.

O que podiam dizer não é assim tão relevante quanto pensam. Tanto que nada de novo ou de forte foi dito. Cessada a agitação de feira, a Amazônia prossegue sua trajetória, como se o fórum não tivesse existido. Ou continuasse a existir para a confraria que o patrocinou, o cingiu aos escolhidos para receber o tratamento preferencial e o adornou com as fantasias da propaganda da esquerda oficial.

Se Davos é propriedade privada dos ricos, o FSM é uma marca dos que estabeleceram sua marca na oposição institucional aos poderosos.


* Jornalista

Rescaldos do Fórum Social Mundial


Selvino Heck *
Adital -

Domingo, primeiro de fevereiro, chego no aeroporto de Belém para embarcar para Brasília. Encontro Frei Betto, Nilmário Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo, Hamilton Pereira, hoje na Agência Nacional de Águas, Milton Rondó, do Ministério de Relações Exteriores, Vidal da Petrobrás, Rosângela Rossi, do Programa Escolas-Irmãs, o educador Oscar Jara, entre outros companheiros. Nas conversas, o Fórum Social Mundial (FSM) recém terminado: avaliações, sentimentos e preocupações com o futuro.
Todos concordam: houve um resgate da idéia original do Fórum; esta edição foi a mais importante desde a primeira em Porto Alegre, 2001.

Para qualquer lugar que se fosse, havia gente, muita gente. Painéis, palestras e seminários lotados, muitas vezes superlotados (um, com a participação de Frei Betto, diante dos protestos gerais, acabou acontecendo na rua, debaixo das árvores e sob sol forte). Assuntos e temas os mais variados, embora alguns dominantes, como a questão ambiental e a ecologia, a América Latina e suas mudanças, a crise econômica e o futuro.


A Rede TALHER de Educação Cidadã (RECID) promoveu um Seminário sobre Democracia e Participação social na América Latina, com participação de Frei Betto, do ministro Paulo Vannuchi dos Diretos Humanos e Diego Pari, vice-ministro de Educação Superior da Bolívia na simbólica tenda Irmã Dorothy. Mais de mil pessoas presentes, clima de alegria, música, cantos, danças, a ponto do ministro Vannuchi comentar que parecia uma festa ou uma celebração. Digo que a Rede assim trabalha a educação popular e cidadã em todo Brasil. (Quem quiser uma notícia, procure em www.youtube.com.br - link pesquisa Educadores no FSM.)

O grande debate, diante da crise econômica mundial que é reflexo e resultado do fracasso do modelo capitalista neoliberal, é sobre o futuro. Ou seja, como será ‘o outro mundo possível’? As experiências do passado, do Leste europeu, energias e sonhos de muitos lutadores e lutadoras, acabaram com a queda do Muro de Berlim: não havia a liberdade e a igualdade sonhadas, o Estado onipresente matou a democracia e a participação popular.

Agora parece abrir-se uma nova oportunidade, quando o dito pensamento único que dizia estarmos no fim da história mostra o desastre a que levou a humanidade: concentração de renda, fome e miséria de um bilhão de pessoas no mundo, o planeta à beira de uma catástrofe ambiental. E a sensação ou certeza de que ou mudamos já ou não se sabe o que será de nossos filhos e netos: em que país e planeta viverão e sobreviverão, com quanta água e ar, com quais valores.

O encontro dos 5 presidentes - Lula, Chávez, Evo, Correa e Lugo - foi emblemático, além de um acontecimento inédito e forte politicamente. Primeiro escutaram palavras, muitas vezes duras, de movimentos sociais e mulheres: o papel dos governos, a construção da democracia, o protagonismo dos pobres e trabalhadores. Depois, falaram, cada um na sua prática e visão, sobre o que estão fazendo e sobre o que pensam do futuro. Todos condenaram a proposta neoliberal de um Estado mínimo e de que o deus mercado resolveria todos os problemas. Disseram que os pobres e trabalhadores não poderão e não irão sofrer as conseqüências de um modelo econômico-social que privilegiou o enriquecimento de poucos. Alguns avançaram no debate sobre o que seria o socialismo do século XXI. Ficou, com certeza, a idéia de que os 5 presidentes e seus governos estão unidos na idéia de uma América Latina soberana e propulsora de um projeto de desenvolvimento diferente do que vem sendo implantado nas últimas décadas. O que, convenhamos, não é pouco.

O desafio do futuro permanece e torna-se urgente. O Fórum Social Mundial de Belém foi um momento de avanço, onde as perplexidades de 2001 começam a se fazer realidade e propostas concretas em 2009. Há mudanças na América do Sul e no mundo e o FSM refletiu, felizmente, este contexto. Embora não seja ainda, nas palavras do presidente Rafael Correa, uma mudança de época em vez de uma época de mudança.

Há um longo caminho a percorrer. Mais debates, mais fóruns, mais governos democráticos e populares, e melhor se socialistas, mais organização popular são necessários, imprescindíveis. De tantos debates, de tantas falas, de tantas reflexões e textos durante e depois, ficou a impressão de que as propostas, muitas vezes, ainda são muito genéricas ou pontuais. Não há ainda caldo suficiente para uma proposta global que responda suficientemente aos grandes desafios da hora presente: qual o novo modelo econômico; como enfrentar o poder do capitalismo financeiro e das transnacionais; como ligar um projeto de desenvolvimento global e nacional com o local que instrumentos garantem democracia e participação popular num mundo onde a informação é global; como garantir o respeito à natureza mantendo a qualidade de vida e os avanços tecnológicos; como construir valores de solidariedade, partilha, igualdade num mundo onde o individualismo pregado pela comunicação de massa predomina.

O Fórum Social Mundial refletiu muitas das perguntas cruciais do mundo de hoje e dos que querem ‘um outro mundo possível’. As respostas, sejam no campo teórico, sejam no prático e na vida, começam a aparecer. Mas é preciso avançar muito na organização popular, recuperar a educação popular como espaço de reflexão e construção, fazer experiências concretas no campo econômico e social, como a economia popular, e com governos democrático-populares, construir uma nova hegemonia econômico-social-cultural.

Existe esperança. Existe futuro.

* Assessor Especial do Presidente do Brasil

Dentro da noite veloz: um balanço do FSM de Belém

Raphael Fernandes Alvarenga *
Adital -
Se não compreendermos a superação da sociedade atual como um imperativo histórico, envelheceremos mais uma geração e aí talvez já será tarde demais para o que quer que seja. Esperemos que o FSM se firme como um espaço no seio do qual mulheres e homens de todas as partes do mundo possam dar uma expressão política a seus interesses, aspirações existenciais profundas e potenciais humanos rebeldes.
A relevância de se realizar um Fórum Social na Amazônia

Sendo uma das mais importantes metrópoles da Pan-Amazônia, Belém se despontou como um lugar estratégico para a realização da IXª edição do Fórum Social Mundial, a Amazônia e a questão ecológica devendo se encontrar no centro dos debates, ao lado de outras questões na ordem do dia, como a crise da economia mundial, a posse de Obama, os massacres de Gaza e os 25 anos do MST. A intenção primeira era chamar a atenção do mundo para a importância da maior floresta do planeta, contendo a maior biodiversidade existente, para o equilíbrio da Terra. Significativamente, a Amazônia lança diariamente na atmosfera cerca de 20 bilhões de toneladas de água em forma de vapor.

Tratava-se também de colocar em evidência que a Amazônia que vemos hoje é longe de ser uma floresta homogênea, um espaço desocupado, uma mata virgem, mas que ao contrário é resultado de séculos de intervenção social. Ali viveram, de maneira exemplarmente sustentável e harmoniosa, sociedades agrícolas, proto-Estados com sofisticada rede de comércio com os Andes e a Mesoamérica. Ao que parece, também foi palco de um vasto império tupi-guarani, que se alastrava do Equador ao Paraguai. No espírito do FSM, um pouco da incrível diversidade humana e cultural da região pôde ser apreciado na "cidade morena", como também é conhecida Belém: índios de 46 etnias participaram do evento, propondo atividades ligadas às suas culturas e interagindo com a juventude vinda de 142 países para pensar coletivamente a construção de um outro mundo.

Apesar da grande diversidade de assuntos abordados e discutidos no Fórum, um consenso parecia atravessar a maior parte das discussões: a grande crise financeira que se abateu sobre o mundo deve ser pensada conjuntamente às crises energética, climática e alimentar. Tratar-se-ia antes de tudo de uma crise de sustentabilidade, que refletiria a crise terminal à qual chegou a civilização burguesa. Hoje já consumimos 30% a mais do que o planeta é capaz de suprir. Com muito custo começamos a entender que a Terra não é algo inerte, com recursos ilimitados, mas algo vivo, que reage, muitas vezes de forma violenta, à prolongada intervenção predatória em larga escala.

Nesse contexto, a noção de "desenvolvimento sustentável" é um descabimento. Como lembrou Leonardo Boff, trata-se de uma trampa, um engodo do sistema, que se reapropria do discurso ecológico para continuar sua expansão devastadora. Na verdade, a ideia de desenvolvimento, sustentável ou não, é em si mesma um engodo, pois supõe um quadro de normalidade capitalista que não resiste à menor confrontação com a realidade. Com efeito, o que dizer da barbaridade em que se transformaram as sociedades chinesa e indiana, essas máquinas infernais de crescimento rápido através da exploração máxima de recursos naturais e mão-de-obra barata?

O problema não é o consumo, mas a produção


"Não podemos consumir os recursos do mundo sem considerar os efeitos", disse Obama no discurso de posse. Não obstante, afirmava no mesmo discurso: "Não vamos nos desculpar por nosso modo de vida, nem vamos esmorecer em sua defesa". Traduzindo: as mais de 700 bases militares estadunidenses implantadas mundo afora continuarão a garantir o modo de vida individualista e ultraconsumista que é marca dos EUA e pobre de quem discorde. Tal contradição no discurso do novo presidente estadunidense coloca em evidência que o que falta não é só "consciência e vontade política", como afirma um dos organizadores do FSM. Tome-se como exemplo a questão ecológica. Há três décadas se chama a atenção para os perigos do aquecimento global e da depredação sistemática da natureza; há três décadas se sabe que uma hora ou outra os recursos terrestres chegariam ao fim e a capacidade do planeta de se regenerar também se esgotaria. E no entanto, o que foi feito a respeito? De significante, nada.

Achar que a tomada de consciência, a mudança de ótica e de modo de vida bastem para se mudar o curso desastroso do mundo é sintomático de um ponto cego da crítica altermundialista. Melhor dizendo, em sociedades esclarecidas os modos de funcionamento da ideologia mudam de figura; não é mais questão de falsa consciência como nos tempos de Marx, mas, como dizia Althusser, da repetição de rituais materiais: sabemos o que fazemos e, no entanto, continuamos a fazê-lo. Numa palavra: a ilusão ideológica se dá no nível do fazer, não do saber. Nesse sentido, faltam à crítica altermundialista análises consistentes das disposições subjetivas, da dinâmica conflitual dos processos de socialização do desejo no interior das mais diversas esferas de interação, no interior da estrutura familiar patriarcal em vias de desintegração, das instituições educacionais completamente voltadas para o mercado e por isso mesmo degradadas, do destroçado mundo do trabalho, dos complexos industriais de divertimento dirigido, do aparato de controle político-econômico... Salvo engano, nos anos 50 e 60 estávamos relativamente mais avançados nesses quesitos; pelo menos a questão se punha de forma articulada com uma reflexão sobre a práxis de transformação social.

Não se trata aqui de ressuscitar velhas fórmulas, mas de sublinhar que hoje a lógica de reprodução mercantil do capital, que procura alimentar o fluxo contínuo de equivalências em campos sociais cada vez mais ampliados, tem por elemento central a incitação contínua ao gozo. Filósofos como Slavoj Žižek e Vladimir Safatle vêm colocando em evidência o fato de que o atual imperativo superegóico ao puro gozo, vazio que é de determinações ou conteúdos normativos privilegiados, faz com que possa ser realizado pelos sujeitos no mau infinito do consumo ilimitado dos objetos. A sociedade da mercadoria tem de apresentar continuamente novas determinações nas quais a obsolescência veloz seja programada, pouco importando o conteúdo das mesmas. Numa sociedade onde tudo tem caráter descartável, provisório e flexível, mesmo as identidades e as promessas de gozo veiculadas pela indústria do entretenimento, a própria insatisfação se torna mercadoria, como já havia notado Guy Debord.

Na situação histórica atual, a ideologia se tornou reflexiva, os modos de vida foram ironizados, de sorte que os sujeitos pós-modernos, embora estejam relativamente cientes dos motores ideológicos de seu agir, não acham para tanto necessário modificar ou reorientar sua conduta. O sujeito sabe muito bem que o tênis Nike que está comprando no valor de um salário mínimo é produzido por crianças de doze anos que trabalham por salários de miséria em condições das mais precárias na Indonésia; também não ignora ser falsa a imagem veiculada pela propaganda publicitária, imagem de felicidade e beleza associada à compra do tênis. Nada disso no entanto o impede de comprar o mesmo e de gozar momentaneamente da ilusão, posta como tal, do estilo de vida associado à marca que consome.

A questão, por conseguinte, é menos de conscientização para a redução do consumo, embora essa não seja de todo irrelevante, que de intervenção coletiva direta nos rumos e determinações da produção.

Balanço crítico de uma década de crítica altermundialista

Nossa moral está alta porque tínhamos razão? Provamos ao mundo que Davos se enganara (e nos enganara) durante todo esse tempo? Não é para tanto. Para começar, ninguém era bobo a ponto de ignorar o caráter altamente destrutivo da livre circulação de capitais num mundo essencialmente assimétrico, o que não impedia que os agentes de mercado mantivessem todo o tempo os olhos fixos nos monitores - veja-se também por aí o quanto a ilusão ideológica é menos a adesão a uma doutrina qualquer que a repetição prática de um ritual. No que concerne ao povo de Porto Alegre, a compreensão insuficiente da lógica do capital, somada ao desconhecimento patente de seus ciclos históricos desde o século XVI, constituíram desde o início um outro ponto cego da crítica altermundialista. Vem daí sua dificuldade de compreender a crise atual. Criticava-se não sem razão o monstro neoliberal, que nada mais é do que uma das expressões políticas mais acabadas da sociedade da mercadoria. Mas o que fazer agora, quando a "economia do antigo vodu", como a nomeou Paul Krugman, economia que acreditava na magia da redução de taxas e cultuava a oferta e a liberdade de investimento, foi subitamente banida do discurso dominante?

Há que se reconhecer: a crítica altermundialista foi até aqui mais reativa que ativamente crítica. Gritava-se com grande indignação em manifestações anti-G8 ou anti-OMC: "O mundo não é uma mercadoria!", mas não se entendia que o devir mundo da mercadoria, inscrito na lógica do capital, que supõe a auto-expansão ilimitada do mesmo, não era outra coisa que o devir mercadoria do mundo. Passou-se dez anos na defesa de uma regulação do sistema através da tributação mínima do fluxo de capitais internacionais a fim de frear o capital especulativo e relançar o investimento do capital produtivo. Em suma: sonhava-se com um capitalismo com rosto humano, além de ecológico, pois também o Protocolo de Kyoto deveria ser respeitado. Tendo este último se tornado uma bolsa de valores do ar e o rosto humano do capitalismo se mostrado uma impossibilidade objetiva, ficou-se sem o que dizer. O próprio FSM estava em vias de se transformar em mercadoria. Como colocou Luiz Hernandez Navarro: "Depois de Nairóbi, em que até empresas privadas financiaram o Fórum, teve quem falasse de que a frase ‘outro mundo é possível’ deveria ser trocada para ‘outro turismo é possível’. Não estou exagerando. Dava impressão de que o modelo nascido em Porto Alegre encontrava seu esgotamento".

Críticas a parte, e a despeito da grande desorganização do evento sediado em Belém, o saldo final me pareceu "positivo". Como lembrou ainda Navarro, o FSM segue sendo a única organização multissetorial internacional com um projeto alternativo emergente. Isso não é de se menosprezar. Em relação às primeiras edições, este foi marcado por uma maior radicalidade e contundência nas análises, uma maior articulação entre movimentos e também por um senso de urgência que não estava tão presente há oito anos atrás: a definição de estratégias de luta social e política para a superação da sociedade do capital se fez mais premente que em anos anteriores. A convicção de fundo, que enfim veio à tona, é que não se trata mais de salvar o sistema, mas de resolver os problemas da humanidade, que chegou a um impasse: ou se coordenam forças para sairmos do buraco no qual nos meteu a lógica destruidora capital, ou possivelmente não passaremos deste século. "A solução", conclui Michael Löwy, "não é uma versão mais verde, mais civilizada, mais ética e regulada do modo de produção capitalista". E completa: "Nós temos que pensar em uma alternativa revolucionária".

Se considerarmos as manifestações de Seattle o momento em que se aglutinaram forças antes dispersas, momento a partir do qual o movimento altermundialista começou a ter maior visibilidade e influência social, é preciso salientar que desde então se deu uma extraordinária politização dos movimentos sociais. Antes de Seattle, cada qual no seu canto, ativistas ecológicos lutavam para salvar focas e baleias enquanto que feministas lutavam por salários iguais para trabalhos iguais, e tudo se passava como se lutas, em aparência, tão díspares não poderiam se concertar em torno de objetivos comuns. Dez anos passados, em nossos dias não é mais possível denunciar a extinção de uma espécie sem se referir à voracidade do capital, que tudo destrói em seu processo de auto-reprodução. Do mesmo modo, nos anos 80 e 90 jamais se ouviria, como se ouviu na marcha de abertura do FSM em Belém, feministas cantando: "capitalismo / não quero, não / meu feminismo / é pra revolução". Ou seja, hoje compreende-se melhor o significado da relação de gêneros no sistema patriarcal de produção mercantil, ou por outra, o fato da construção social dos gêneros ser dependente da lógica econômica da valorização do capital, o que implica que a superação da socialização estabelecida pelo vínculo de capitalismo e patriarcado seja indissociável da superação da própria sociedade capitalista.

Para além do capitalismo

O capitalismo é a única formação social na qual o valor econômico e suas formas derivadas (Estado burguês, mercadoria, trabalho, dinheiro, propriedade) se tornam formas fundamentais que condicionam diretamente as relações sociais. O predomínio de tais formas sociais fetichizadas implica a ignorância quase completa da sensibilidade social, vale dizer, das qualidades individuais, das necessidades sociais concretas e das condições humanas de sociabilidade. A atual crise mundial da valorização, ou seja, como lembrou Chico de Oliveira numa entrevista recente, a impossibilidade crescente do sistema em realizar a mais-valia, é vivida pela sociedade como uma crise de sua própria capacidade de socialização.

Não parece restar dúvidas quanto ao fato de que, senão por outras razões, pelo menos por causa dos perigos iminentes ligados à ecologia da Terra, isto é, à destruição intensiva e desenfreada do planeta (secas, aquecimento climático, aumento do nível dos mares, esgotamento dos recursos vitais), à ecologia das cidades (explosão urbana, megacidades superpopuladas à beira da anomia social, favelização do mundo, segregação) e à ecologia dos sujeitos (narcisismo coletivo, individualismo, cultura do medo e da desconfiança generalizada, depressão, ansiedade, anorexia, paranóia, perversões diversas), a questão da superação do capital e de suas formas fetichizadas será a questão mais importante do século. Quando se diz, na esteira de Walter Benjamin, que o capitalismo não morrerá de morte natural, o que está implicado na afirmação é o fato dos limites do capital serem externos: tanto objetivos (ou sócio-ecológicos) como subjetivos (ou psicossomáticos).

As premissas com as quais deve trabalhar a perspectiva da transformação social são as seguintes: a humanidade atingiu um nível de conhecimentos e de meios técnicos que tornam possível a construção coletiva direta de todos os aspectos de uma existência afetiva e prática emancipada; o não emprego destes meios superiores de ação na construção de uma sociedade livre, de indivíduos conscientes e sujeitos de seu próprio movimento social, se deve aos imperativos irracionais da economia capitalista, atualmente global, assim como à ausência aparente de forças emancipatórias que, imanentes ao sistema, apontem para além dele.

É preciso notar ainda que racionalização da sociedade da mercadoria é, e sempre foi, uma racionalização insuficiente, pois que determinada de cabo a rabo por uma finalidade irracional e externa: a acumulação ilimitada de capital com o único objetivo de se acumular sempre e cada vez mais capital. A dinâmica expansiva do capitalismo histórico reduziu a razão a uma pura instrumentalidade, tornou-a indiferente às finalidades humanas e aos conteúdos sensíveis. Donde a necessidade de opor a esta razão instrumental uma contra-razão, atenta ao conteúdo, uma razão a um tempo social e ecológica, em função da qual, numa sociedade pós-capitalista, se determinaria conscientemente e de forma democrática a utilização das forças sociais produtivas, dos recursos vitais e da riqueza socialmente produzida pelo conhecimento humano, em vez de abandoná-los sem mais nem menos ao processo cego da maquinaria social capitalista. Se não compreendermos a superação da sociedade atual como um imperativo histórico, envelheceremos mais uma geração e aí talvez já será tarde demais para o que quer que seja.

A legitimação ética e estética da nova sociedade tem que se fundar sobre um considerável melhoramento da qualidade de vida, que se mede por "valores de uso" não capitalistas, como moradia, saúde, alimentação de qualidade, educação formadora, tempo social disponível para a cultura dos lazeres, espaços públicos diversificados... Esperemos que o FSM se firme como um espaço no seio do qual mulheres e homens de todas as partes do mundo possam dar uma expressão política a seus interesses, aspirações existenciais profundas e potenciais humanos rebeldes.


* Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain

Fórum Mundial de Teologia e Libertação


Leonardo Boff *

Adital -
Desde os seus primórdios no final dos anos 60 do século passado, esse tipo de teologia nasceu no esforço de articular o discurso da fé com o discurso da sociedade na perspectiva dos oprimidos. Sua marca registrada foi e continua sendo "opção pelos pobres contra a pobreza". A perspectiva era e é global, de sorte que já nos anos 70 se organizaram os primeiros Fóruns Mundiais da Teologia da Libertação, em Chicago, no México e no Brasil e continuaram até que a cegueira de setores poderosos do Vaticano os tivessem proibido. Como são por natureza ecumênicos, tais fóruns continuaram a acontecer regionalmente.
Com o surgimento dos Fóruns Sociais Mundiais a partir de 2001 encontrou-se o espaço público para a continuação destes encontros globais, primeiro em Porto Alegre em 2005, o segundo em Nairobi no Quênia em 2007 e agora em 2009 em Belém.


Perfilou-se melhor o estilo da reflexão. Ao invés de se falar simplesmente de teologia da libertação e assim ressuscitar as discussões do passado, preferiu-se falar em teologia e libertação. O sentido é confrontar a fé refletida e critica (teologia) com os temas da opressão que possuem os mais diversificados rostos desde as crianças consumidas como carvão na máquina produtivista até os massacres como os de Gaza. O discurso não é intraeclesiástico e em favor ou contra as Igrejas, mas público, voltado para a sociedade mundial. A questão central nao é discutir o futuro do cristianismo, mas que contribuição este pode dar para os verdadeiros problemas humanos que são a perpetuação da paixão dos pobres, o aquecimento global e suas eventuais conseqüências perversas.

O cristianianismo não pode ser um superego castrador de temas importantes da agenda mundial, mas deve ser uma fonte de inspiração e de ousadia para questionar o paradigma civilizatório dominante que faz de todos, ricos e pobres, oprimidos, afogados no consumismo de bens materiais, sem sentido de solidariedade e de cuidado para com o patrimônio comum que é o planeta Terra. Mas principalmente pode mostrar-se fecundo no compromisso, junto com os movimentos sociais - os verdadeiros novos atores - no combate ao sistema do capital produtor de grandes injustiças, na luta pela terra, negada às grandes maiorias e na busca de alternativas de produção e de vida. Não é sem razão que é unicamente esse tipo de cristianismo que possui mártires como a Irmã Doroty, o Padre Josimo e tantos outros da América Latina. Das burocracias eclesiásticas nunca saem místicos, santos e mártires mas apenas medíocres reprodutores do establishment religioso.

Em todos estes Fóruns de Teologia e Libertação compareceram mais de mil pessoas vindas de todos os Continentes, também da Europa e dos USA, o que mostra a vitalidade deste tipo de pensamento. As autoridades doutrinárias do Vaticano estão iludidas quando imaginam que com sua disciplina liquidaram a Teologia da Libertação. Ela nasce do grito da Terra e dos pobres. Enquanto estes continuarem a gritar, há todas as razões de se atuar de forma libertadora e elaborar a partir daí uma teologia. De certa forma, suas intuições se tornaram patrimônio comum do cristianismo contemporâneo, salvando-o do cinismo.

O tema deste ano em Belém foi "Água, Terra e Ecologia para um outro mundo possível". Partiu-se da conjunção das várias crises, todas elas ligadas à falta de sustentabilidade do sistema-Terra. O tema da ecologia se impunha. Não como técnica de gerenciamento de recursos escassos, mas como novo paradigma de relação para com a Terra, não como mero meio de produção, mas como um ser vivo, gerador de toda a vida. Como disse um discípulo de E. Morin, Patrick Viveret, biólogo e economista, em sua palestra: importa fazer "um bom uso do fim de um mundo". Agora se abre espaço para um outro mundo não só possível, mas necessário. O cristianismo é chamado a trazer a sua contribuição a partir de seu capital de respeito e de cuidado.


* Teólogo

FSM: Pequenas experiências para a sua continuidade

Doroti e Egydio Schwade *
Adital -
Através da transmissão alegre da Rádio Nacional, acompanhamos o fervilhar do caldeirão da esperança que foi o Fórum Social Mundial de Belém. Vão aqui opiniões e a participação de quem não pôde estar presente neste importante evento, apesar de morar na Amazônia e da vontade de estar aí.
Sempre nos temos preocupado, em especial, pela continuidade dos FSMs após essas grandes Assembléias. A assembléia sempre necessita de muitos recursos financeiros. Não assim a sua continuidade. Esta se baseia principalmente em uma economia não visível de que, cremos, muitos ainda não se deram conta. O que dará força, presença e corpo ao FSM serão as pequenas experiências do dia a dia que não se estruturam sobre a ordem financeira do Estado, mas sobre a mãe-terra. Em nossa vida tivemos oportunidade de participar intensamente de um amplo mutirão de pessoas e de entidades criadoras de experiências que provocaram milagres e ressurgiram povos. Por isso continuamos a acreditar que são principalmente essas pequenas ações, onde os fracos e os pobres humilhados do sistema vigente se transformam em protagonistas que irão acelerar a caminhada para o "outro mundo possível".


Uma das experiências desse mutirão foi a OPAN - Operação Amazônia Nativa, hoje com sede em Cuiabá. Criada em 1969 a OPAN festeja no próximo dia 6 de fevereiro os seus 40 anos de existência. Em 1970 enviou o primeiro grupo de jovens voluntários para uma convivência humilde e fraterna com comunidades indígenas do Noroeste Mato Grosso e de Rondônia, espalhando-se depois por outras partes da Amazônia.

Pela sua postura esses jovens deram início à transformação do modelo de presença de algumas igrejas junto aos povos indígenas brasileiros e provocaram melhorias na política indigenista oficial. A partir desta experiência e de outras semelhantes, como a das Irmãzinhas de Jesus junto ao povo indígena Tapirapé nasceu, em 1972, o CIMI - Conselho Indigenista Missionário, que, por sua vez, desencadeou em meados dos anos 70 as assembléias indígenas, começo das organizações dos povos índios de hoje. Estas, por sua vez, fortaleceram a luta da reconquista da terra e fizeram ressurgir muitos povos das cinzas. Povos indígenas que um programa da Ditadura Militar decidira extinguir em 20 anos. Hoje, enquanto esta ditadura faz parte de um triste passado os índios estão aí em Belém e de norte a sul, presentes com voz dia a dia mais esperançosa para eles e para nós.

É importante ressaltar que as primeiras assembléias indígenas sempre desencadearam ações concretas nas áreas mais criticas, ali onde os irmãos índios mais sofriam como ocorreu, por exemplo, na terceira assembléia indígena que se reuniu, em setembro de 1975, na aldeia Boqueirão no interior da Reserva Indígena Meruri dos índios Bororo/MT.

Os relatos sobre a situação angustiante dos índios Kaingang e Guarani do Sul do Brasil e dos Guarani do MS, fizeram a assembléia tomar a decisão de enviar uma equipe para o MS e outra para o Sul do Brasil.

Esta última, composta de índios Bororo e Xavante, visitou a maioria das áreas do Paraná ao Rio Grande do Sul. Entre as áreas visitadas vale destacar a dos Guarani de Rio das Cobras no Paraná e Nonoai no Rio Grande do Sul. Poucos meses após a visita dos Xavantes e Bororos, os Guarani de Rio das Cobras tomaram a decisão de expulsar os invasores de sua área. E os jornais destacavam no dia seguinte ao inicio da revolta dos Guarani: "300 guerreiros Xavantes prontos para irem a Rio das Cobras". Dois anos depois chegou a vez dos Kaingang de Nonoai retomarem a sua área. Numa ação firme e fulminante expulsaram em menos de um mês todos os invasores. Estes em sua maioria pequenos agricultores, iludidos por uma Reforma Agrária que nunca acontecia, não tendo agora para onde ir acamparam em Ronda Alta, onde com o auxilio de um padre foram entendendo melhor o seu problema e criaram o MST, solidário, até hoje com a luta dos agricultores e dos índios.

Semelhantemente, ocorreu com outra assembléia indígena, a de Surumu na região da Reserva Raposa Serra do Sol/Roraima, em janeiro de 1977, onde em conseqüência de represálias da Policia Federal e da FUNAI contra aquela assembléia, os povos indígenas da região desencadearam um processo de organização que perdura até hoje e que é responsável pela garantia de seu território contra a forte pressão do agronegócio.

A saúde brasileira também sofreu transformações ou melhorias a partir de uma despretensiosa experiência. No início dos anos 70, Gil e Albinear, um casal de médicos, iniciou em CERES, Diocese de Goiás, com uma equipe de sonhadores com "pé no chão", um novo modelo de hospital, base de discussões e análises do sistema de saúde pública nas comunidades indígenas e pobres. Valorizando os saberes populares nesta área, ajudaram a repensar o atendimento médico e até a iniciar, junto com muitas outras experiências semelhantes uma etnomedicina, mais humana e eficaz que de certa maneira "contagiou" o pensamento e as práticas do sistema de saúde até então vigentes. Criou-se uma brecha no arrogância do sistema médico ocidental baseado na alopatia.

É verdade, eles não foram os únicos protagonistas, mas são um bom exemplo da revolução que se faz quando se dialoga com os saberes populares sem preconceito. E isto acontece quando o senso de justiça está acima do status quo e da segurança do emprego.

Esses e outros inúmeros jovens de ontem, que enfrentaram a Ditadura Militar e de forma original desencadearam processos de esperança para os mais lascados, vivem hoje no anonimato, espalhados de Porto Alegre a Viena, da Bolívia a Madagascar quando não foram assassinados pela causa ou mortos por motivo de doença que contraíram durante o seu trabalho solidário.

A perspectiva do FSM é chamar os pobres e os fracos para serem os principais protagonistas do "outro mundo possível". Só o envolvimento deles com voz e vez é que vai curar as chagas da humanidade. Por detrás dos pobres e oprimidos se movimenta uma economia invisível que é responsável por pelo menos dois terços da sobrevivência da humanidade. Só a confiança, o reconhecimento e a valorização da força desta economia invisível e a sua prática nos levarão ao almejado "outro mundo possível".

Após esse maravilhoso fórum de Belém devemos estar em condições de sair a campo com grupos de pessoas voluntárias para ajudar os povos indígenas de Raposa Serra do Sol na reposição da biodiversidade e despoluição das áreas depredadas pelo agronegócio, de retomar para os Tupininquim do Espírito Santo os 40.000 ha. que a Aracruz-Celulose invadiu e depredou, a colaborar mais vigorosamente com o MST na Reforma Agrária e a organizar uma multidão de voluntários para reconstruir os lares do povo palestino da Faixa de Gaza...


* Casa da Cultura do Urubuí/Amazonas

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