Romero Venâncio·
RESUMO
O breve texto tem por objetivo apresentar o livro do teólogo José Comblin, intitulado: A Profecia na Igreja. O autor problematiza a noção de “profetismo” desde a sua mais remota aparição na tradição judaica até os dias atuais. Destacamos a capacidade critica do teólogo em desmontar as estruturas das instituições cristãs que a muito perderam o seu vigor profético e vivem limitas a discursos reacionários e de uma constante justificativa de apego ao poder eclesiástico. O livro é dedicado a um profeta contemporâneo, o bispo católico romano de Barra/BA Dom Luis Capio, que corajosamente e misticamente enfrentou um jejum contra a danosa transposição do rio São Francisco.
PALAVRAS-CHAVE
Profetismo. Opção pelos pobres. Justiça social.
Chega a parecer uma espécie de “idéia fora do lugar” o desconcertante e extraordinário livro do teólogo José Comblin, intitulado: A profecia na Igreja (editora Paulus, 2008). Por quê? Pensemos na conjuntura eclesial contemporânea e aí está um indício de como esse livro desconcerta os mais descuidados leitores de obras teológicas ou os crentes católicos e protestantes. Vejamos algumas notas. A Igreja católica atual abandonou a idéia da profecia e a prática profética. Essa instituição romana atual, herdeira de toda uma política pastoral do Papa João Paulo II e continuada à risca pelo atual Bento XVI, “optou” por um caminho pastoral em que a prioridade é a “velha disciplina”, e temas que se limitam ao âmbito moral (que mais parece um velho moralismo pré-moderno). O discurso dos prelados católicos, e de uma gama de leigos midiáticos, tem se preocupado constantemente com temas de moral sexual, familiar, matrimonial e de como reforçar a estrutura interna da instituição. A face pública aparece nas multidões que se aglomeram em torno de padres “cantores”, líderes de uma geração sem brilho no olhar e sem utopia, onde o negócio da religião é a questão de como sobreviver individualmente na selva de pedra do Capital. A lógica é esta: o Papa e os bispos reforçam os movimentos, que por sua vez reforçam o discurso moralista dos prelados e eis o “projeto de evangelização contemporâneo”. A conseqüência mais direta é a negação sistemática daquilo que marcou profundamente a chamada “Teologia da Libertação”, a saber, a opção pelos pobres e pela sua luta por libertação dos grilhões das diversas formas de escravidão, ou ainda, como bem afirma Gustavo Gutiérrez: “Experiência esta que vive no coração do movimento iniciado pelos pobres da América Latina com vistas à afirmação de suas dignidades humanas e de sua condição de filhos e filhas de Deus” (GUTIÉRREZ, 1984, p.13). Nada disso toca mais o coração e a mente de muitos católicos e protestantes nos dia atuais. Diante desse quadro, o livro recente de Comblin é um raio luminoso num céu escuro. Comecemos pelo tema: a profecia. Desde os mais remotos estudos sobre a tradição profética bíblica, entende-se a vocação dessas “pessoas especiais” como aquelas que têm “uma visão religiosa que resulta numa reavaliação do Estado, da sociedade e da cultura. Nem todos, mas alguns profetas repudiam o poder estatal, a cultura militar em fortificações militares” (KAUFMANN, 1989, p.347). Fica claro nas palavras do grande estudioso da tradição profética judaica, Yehezkel Kaufmann, que a posição e o anúncio dos profetas antigos eram ligados a situação política que tocava diretamente o povo de Israel. A profecia é motivada lá no íntimo por uma Palavra – a de Deus – que interpela a um anúncio de libertação. A espiritualidade profética está intimamente ligada a uma prática profética, dito de outro modo, o itinerário espiritual do profeta não se desliga da sua missão. Afirma Comblin de maneira lapidar: “A profecia não se separa da pessoa do profeta, pois este profetiza com toda sua vida. A profecia não é puro discurso, mas ação pública de grande visibilidade” (COMBLIN, 2008, p.12).
Em onze breves capítulos, o teólogo Comblin nos faz viajar na “palavra profética”, como nos bons e velhos tempos da “Teologia da Libertação”. Parte de uma caracterização dos profetas do Antigo Testamento bíblico e nos leva até a possibilidade de “profecias futuras”. Tudo bem articulado e fundamentado numa clara opção pelo lugar dos pobres na história e de como se tornaram destinatários de uma profecia histórica. Sigamos alguns passos do livro.
A profecia no Antigo Testamento bíblico é tratada por Comblin da seguinte maneira: “Vamos apenas mostrar nos profetas do Antigo Testamento tudo aquilo que apresenta analogias com situações e pessoas contemporâneas. A nossa finalidade é compreender melhor os fenômenos atuais” (COMBLIN, 2008, p.31). Significa que o trabalho tem um objetivo hermenêutico claro: demonstrar a atualidade da profecia e seus desdobramentos na ação de algumas pessoas ou grupos identificados como profetas. O grande “achado hermenêutico” de Comblin, na linha de um dos maiores estudiosos do profetismo de Israel José L. Sicre, é procurar entender o profetismo em seu surgimento como crítica às instituições de poder que oprimem os “pobres de Israel”. A tese é: o profetismo não surge ao lado do poder, da instituição religiosa, da organização monárquica, mas do lado da poesia, do transe, da beleza, do popular... Essas figuras evoluem na história do povo semita a ponto de definirem a idéia de Deus como aquele que existe não para legitimar o poder do rei, mas aquele que honra sua aliança com o “povo que clamava no deserto”. A lista dos profetas e profetisas que se opunham às pretensões dos reis e falsos profetas é grande no Antigo Testamento. Como para o autor de A Profecia na Igreja, o interesse não é fazer uma pesquisa exaustiva sobre o profetismo bíblico, mas nos orientar para a atualidade da mensagem profética, assim, podemos resumir esse capitulo do livro em três momentos interligados onde fica mais claro a Palavra profética: primeiro experimentar a presença de Deus no meio do povo e render-se a essa experiência inefável. Essa “proximidade com Deus” faz do profeta um “ser livre” das garras dos poderosos e torna-se a fortaleza de seu testemunho. Segundo, o profeta é veículo permanente do despertar da memória histórica do povo. Afirma Comblin: “Com a sua palavra o profeta espera despertar a consciência do povo e evitar as calamidades anunciadas” (COMBLIN, 2008, p.35). A memória do passado, como expressão da fidelidade à Aliança, é um dos critérios mais importantes para o povo poder reconhecer se um profeta é verdadeiro ou falso. Terceiro, o caminho da justiça. Ponto central pra Comblin, a justiça acontece na palavra coerente do Deus da Aliança. “Os profetas são as pessoas que expressam a exigência de justiça de Deus. As promessas são para os que praticam a justiça e os castigos para os que praticam a injustiça”, afirma o teólogo (COMBLIN, 2008, p.33). Sem essa concepção de justiça, não haveria sentido crer em Deus e a “utopia dos pobres”, o Reino, seria vazio de conteúdo. A luta perderia seu sentido mais profundo e se perderia numa imanência destituída de transcendência. Merece destaque uma palavra do teólogo sobre a profecia: “Os profetas aparecem nos tempos de crise... Aparece em tempos em que o povo ainda tem possibilidade de escolher seu destino” (COMBLIN, 2008, p.37). Palavra de grande significado pra os dia atuais, marcados por um início de crise econômica na ordem do Capital de proporções mundiais e que já começa a chegar no cotidiano dos mais pobres. Fica no ar uma pergunta: onde está se preparando uma palavra profética hoje? Onde está a palavra profética da classe trabalhadora diante dessa crise perversa? Já estamos assistindo o espetáculo da palavra dos donos do poder: banqueiros, governos, empresários, os midiáticos em geral, mas as palavras do povo sofredor onde está? O ensaio de Comblin nos interpela radicalmente a pensar no lugar da palavra profética da classe trabalhadora hoje.
Ponto mais alto do ensaio é o capitulo intitulado: Jesus profeta. O autor começa nos fazendo refletir sobre a “situação histórica” de Jesus e sua “humanidade”. Nesse ponto merece a lembrança de um livro extraordinário na história da teologia no Brasil. Trata-se de Jesus de Nazaré: meditações sobre a vida e a ação humana de Jesus (publicado pela editora vozes em 1974). Comblin nos remete àquilo que sempre nos foi postergado pensar enquanto cristãos católicos, a saber, a humanidade de Jesus, a sua historicidade. “O próprio Jesus viveu dentro da história humana e ocupou, dentro dela, um lugar determinado” (COMBLIN, 2008, p.52). Aqui estaria uma chave para entender a “ação profética de Jesus”. Jesus é oriundo de uma Palestina que no século I vivia tempos conturbados e violentos, tempo de miséria e insegurança por parte do povo simples, esperançoso de ouvir a “voz de Deus”. Mergulhado no empobrecimento, nas doenças que o mantinha excluído da religião judaica oficial, confuso no meio de várias propostas e caminhos, o povo perguntava onde ouvir a voz libertadora dos profetas. Podemos perceber, por uma simples contextualização como essa, como a Igreja Católica atual está perdida em não saber escutar a “voz popular que clama no deserto” vitimada por toda sorte de sofrimentos. A lógica do Capital está levando o mundo a tornar-se um imenso “planeta favela” (nas palavras do urbanista americano Mike Davis) e as “instituições cristãs” não saem das “casas-grandes” das burocracias religiosas. Assim como lá na Palestina do século I – basta estudar mais as obras de Joaquim Jeremias ou Eduardo Hoornaert – sentimos o quanto ainda nos dias atuais carecemos de profetas e de um povo com palavra profética. O livro de Comblin é uma lufada de inteligência e apelo à prática cristã contemporânea, para que entendamos que Jesus transforma o grito dos pobres em apelo de Deus. Para o nosso teólogo, “O povo identificou Jesus como profeta, o que significa que as manifestações de Jesus eram as de um profeta” (COMBLIN, 2008, p.53). Ele nos demonstra que os pobres reencontram em Jesus o mesmo Deus de sempre, Javé, o Deus dos pais revelado pelos profetas antigos. Este Deus agora assume o nome de Pai, Pai de Jesus Cristo nosso irmão. Estamos diante do último grande teólogo profeta gerado nas entranhas da teologia da libertação? O tempo dirá. Ou já pode está dizendo.
A profecia na Igreja não pára numa apresentação da palavra profética apenas no Antigo Testamento e na prática de Jesus. Mais da metade da obra é sobre as conseqüências dessa mesma palavra profética na história da Igreja até os dias atuais. Como exímio conhecedor da história da Igreja, Comblin vai demonstrando como acontece o pendulo do aparecer e velar da profecia nos tortuosos e vibrantes caminhos do Cristianismo ocidental. Nas páginas finais, Comblin nos faz uma observação em caráter de questionamento interessante: “Pode alguém ser teólogo e profeta?” (COMBLIN, 2008, p.266) e responde afirmativamente, citando alguns poucos exemplos, tais como: Yves Congar, Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino. Da nossa parte estamos de pleno acordo. Só acrescentaríamos à lista o próprio José Comblin, e com um adendo determinante: Comblin é hoje o teólogo católico mais crítico das estruturas eclesiais e o mais livre de todos os esquemas de poder que tanto macula a imagem histórica da Igreja. Para aqueles que não o conhecem, podem pensar de se tratar de um jovem padre afoito pela vocação que lhe queima o peito. Estamos um pouco longe disso. Trata-se de um experiente teólogo com mais de 50 anos de sacerdócio e com um vigor intelectual e espiritual como poucos jovens teólogos têm nos dias atuais. Implacável na crítica teológica e incansável defensor da causa dos pobres, é ele um profeta andarilho de Deus, que só sossegará quando a “graça de Deus” o chamar, definitivamente, para tomar acento ao lado dos grandes profetas que por aqui peregrinaram, amaram e lutaram.
BIBLIOGRAFIA
COMBLIN, José. Jesus de Nazaré: meditações sobre a vida e a ação humana de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1974.
COMBLIN, José. A profecia na Igreja. São Paulo. São Paulo: Paulus, 2008.
DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço: itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1984.
HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994.
JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983.
KAUFMANN, Yehezkel. A religião de Israel. São Paulo: Perspectiva/Associação universitária de cultura judaica/EDUSP, 1989.
SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis: Vozes, 1994.
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