sábado, 24 de janeiro de 2009

Os profissionais da cultura: formação de quadros para o setor cultural

Entrevista com José Márcio Barros

O antropólogo José Márcio Pinto de Moura Barros tem longa experiência na formação e capacitação de quadros profissionais para o setor cultural, adquirida principalmente na área acadêmica. É professor do programa de pós-graduação em comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e do curso de ciências sociais e comunicação daquela universidade, onde também dirige o Departamento de Arte e Cultura. Além de sua atuação na PUC Minas, é coordenador pedagógico dos cursos de especialização em gestão cultural na Universidade de Cuiabá (MT) e de ensino e pesquisa nos campos da arte, cultura e educação na Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais. Publicou, entre outros livros, Diversidade Cultural: Da Proteção à Promoção, recém-lançado pela Editora Autêntica, e Comunicação e Cultura nas Avenidas de Contorno, que saiu pela Editora PUC Minas em 2005.

Em complemento à sua atuação na academia, coordena em Belo Horizonte o Observatório da Diversidade Cultural (ODC), programa voltado à informação, à capacitação e à experimentação das possibilidades de atuação de gestores culturais, arte-educadores, artistas e outros agentes do campo da cultura. Colabora, ainda, com organizações governamentais e privadas, como é o caso do Observatório Itaú Cultural, onde participou de seminários e outros encontros técnicos.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à revista, em que são discutidos os desafios, necessidades e possibilidades para a criação de profissionais capazes de atuar com qualidade em um campo ainda distante de contar com contornos definidos, mas que se transforma e se reinventa em ritmo crescente.

Revista Observatório Itaú Cultural: O senhor é diretor de arte e cultura da PUC Minas e coordenador do Observatório da Diversidade Cultural. Pode descrever brevemente as atribuições dessas duas instituições e nos dizer quais são as principais atividades de formação e/ou capacitação de quadros para o setor cultural por elas desenvolvidas?

José Márcio Barros: A Diretoria de Arte e Cultura (DAC) da PUC Minas é um órgão auxiliar da Reitoria e foi criada em 2005. Trabalhamos com as seguintes diretrizes gerais:

Formação: Realizar projetos e ações para o desenvolvimento de habilidades e práticas artísticas, competências para o trabalho com a cultura e formação de público interno e externo;
Informação: Desenvolver estratégias e ferramentas de comunicação para a divulgação de idéias e atividades culturais no âmbito da universidade e dos demais setores da sociedade;
Difusão: Promover a experiência de trocas culturais e ações consorciadas entre os diversos campi, unidades acadêmicas e demais instituições parceiras da universidade;

Produção: Fomentar a criação artística e cultural no ambiente acadêmico e estimular o constante aprimoramento dos grupos artísticos já existentes;

Gestão Estratégica: Participar da gestão do patrimônio histórico, acervo artístico e espaços culturais da universidade e das decisões relativas aos espaços de sociabilidade nos diversos campi e unidades acadêmicas.

Integram a estrutura da DAC o Museu de Ciências Naturais, a PUC TV, a Escola de Teatro da PUC Minas, o coral e um grupo de teatro experimental.

As atividades de formação são realizadas tanto como atividade regular das estruturas que integram o órgão quanto em atividades especiais na forma de oficinas e cursos. Para se ter uma idéia, a Escola de Teatro conta com aproximadamente 230 alunos nos cursos de iniciação profissionalizante e infantil. A PUC TV, por seu lado, constitui-se como um espaço de aprendizagem de TV e vídeo que atende aproximadamente 30 alunos semestrais. A própria DAC realizou no primeiro semestre de 2008 cursos e oficinas de dança contemporânea, pandeiro, canto a capela, cinema brasileiro, iniciação ao desenho etc. No segundo semestre, oficinas de clown, haicai e história do rock e da MPB. As atividades atendem aos alunos da universidade e aos demais interessados, e atingem Belo Horizonte e outras cidades onde a PUC Minas se encontra.

Já o Observatório da Diversidade Cultural é um programa desenvolvido por meio do Instituto Artivisão, uma organização não-governamental de Minas Gerais que tem apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte e parceria com a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (www.observatoriodadiversidade.org.br).

Esse programa propõe realizar algo que é identificado como prioritário nos mais diversificados círculos de reflexão e ação transformadora da cultura no mundo: a efetiva capacitação de artistas, arteeducadores, agentes culturais e profissionais de áreas afins para o trabalho cotidiano com a diversidade cultural. Sua proposta é organizar processos de capacitação e difusão que garantam a integração entre a produção e a disponibilização de informação, a reflexão teórico-conceitual e experimentações estético-educativas para artistas, agentes culturais e educadores integrantes de instituições, grupos e projetos culturais de Minas Gerais e de outros estados. Procuramos levar os participantes a uma reflexão consciente sobre o tema, que lhes permita integrar o conceito e o sentido da diversidade cultural em seu trabalho, de forma a tornarem-se verdadeiros multiplicadores de seus fundamentos filosóficos e teóricos e de suas possibilidades de fundar práticas e metodologias mais abertas e inclusivas.

O programa Observatório da Diversidade Cultural é, pois, uma proposta de caráter coletivo e colaborativo que vem responder a uma necessidade surgida após a promulgação da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco1: garantir que os princípios ali contidos sejam mais do que um elenco de boas intenções e se concretizem em políticas de governo e sociedade civil, em instrumentos eficazes de monitoramento e avaliação da efetividade dos princípios da Convenção. Com esse programa promovemos a organização de um ambiente virtual de informações sobre a diversidade cultural pelo mundo, aberto à consulta e alimentador de órgãos de comunicação e instituições. Mais que uma ferramenta virtual de caráter tecnológico, é um elemento de intervenção e acesso à informação articulada sobre o tema da diversidade cultural, aberto e voltado a instituições e projetos no Brasil e no mundo. A criação e a manutenção desse espaço visam contribuir com as experiências concretas de inclusão digital, fornecendo boletins eletrônicos de atualização, organizando banco de dados e textos sobre o tema e estimulando a interação entre os participantes e interessados.

Além da manutenção desse ambiente virtual, o Observatório da Diversidade Cultural desenvolve programas de formação teórico-conceitual que aliam a diversidade da cultura e o desenvolvimento. Realiza encontros de reflexão, estudos e seminários em torno dos temas diversidade cultural como patrimônio; documentos internacionais sobre direitos culturais e diversidade cultural; princípios de cooperação internacional e diálogo intercultural; leitura crítica da mídia e formação da sociedade e da cultura nas cidades e a questão da diversidade.

R.O.I.C.: Em junho de 2008, o senhor promoveu em Belo Horizonte o 3º Seminário
Diversidade Cultural. Quais contribuições ou reflexões sobre a formação de agentes, gestores, arte-educadores e outros quadros profissionais da cultura podem ser destacadas nessa edição e, eventualmente, nas edições anteriores?

J.M.B.: O que se pode destacar é que temos pautado a discussão da diversidade cultural em nossas atividades locais e nos encontros internacionais com duas ênfases:
• A convocação e o diálogo entre diversos setores da sociedade, instituições e sujeitos, de forma a garantir um debate plural sobre a temática, evitando assim falsos consensos e posições românticas sobre nossas diferenças;
• A perspectiva efetiva da transversalidade na abordagem da diversidade cultural, tomada não apenas como entrelaçamento de temas, mas como modo mesmo de concebê-la.

A primeira edição do seminário aconteceu em 2005, em parceria com o Ministério da Cultura do Brasil, a Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, a Escola do Legislativo, a ONG Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Mundializações (Germ) e a Maison des Sciences de L’Homme Paris Nord. Realizado em duas etapas, o evento teve a participação de educadores, estudantes, agentes culturais, jornalistas, artistas, gestores culturais, pesquisadores e interessados em geral. Graças ao sistema InterLeges, o evento foi disponibilizado a todas as Assembléias Legislativas do país. Os anais desse seminário foram publicados em 2006 pela PUC Minas e encontram-se disponíveis no site do ODC.

A realização do segundo seminário, em 2007, pretendeu dar continuidade à reflexão sobre os desafios da promoção e da proteção da diversidade cultural, promovendo a atualização sobre o estágio em que se encontravam as medidas regulatórias, as pesquisas e a produção de conhecimento em Minas Gerais, no Brasil e em outros contextos socioculturais sobre a questão. Permitiu o compartilhamento sensível de experiências entre aqueles que trabalham sob o signo da diversidade cultural.

No último mês de junho foi realizado o terceiro seminário, com as mesmas perspectivas de debater a diversidade cultural sob diferentes óticas e perspectivas. Sua programação esteve organizada em painéis e mesas-redondas, e contou com o lançamento do livro Diversidade Cultural – Da Proteção à Promoção, organizado com base no seminário de 2007. Uma das mesas-redondas centrou-se justamente na questão da gestão da diversidade, enfocando, entre outros temas, os processos de formação e capacitação como espaços privilegiados da experiência humana e do fortalecimento das práticas que envolvem a noção da diversidade cultural. Sob a mediação de Jurema Machado, coordenadora de cultura da Unesco no Brasil, contou com as presenças de Enrique Saravia, da FGV Rio, e de Maria Helena Cunha e Marcela Bertelli, da Duo, de Belo Horizonte.

R.O.I.C.: Uma das questões mais freqüentes quando se discutem indicadores culturais e outras formas de aferição dos fenômenos culturais é como definir cultura. São muitas as soluções propostas e, a depender de cada uma delas, também podem ser muito diferenciadas as análises e alternativas de intervenção. Esse também é um problema para as atividades profissionais da cultura? Em outras palavras, como definir as profissões e atividades culturais e propor programas de formação e capacitação que respeitem as especificidades dessas atividades?

J.M.B.: Não é nada fácil equacionar a relação entre as dimensões socioantropológicas da cultura, ou seja, a cultura como tudo aquilo que é fruto de aprendizagem em sociedade, e suas dimensões específicas, como a arte, as experiências simbólicas e estéticas, a indústria cultural etc. Penso que uma forma de equacionar isso em processos de formação de gestores e agentes culturais seja estabelecer relações por meio daquilo que autores como Edgard Morin chamam de pensamento complexo. Ou seja, trata-se de um modelo teórico e conceitual que pode enfrentar a complexidade dessa relação sem cair no “canto da sereia” de sua simplificação. Assim, penso que a adoção de um conjunto de perspectivas possa nos ajudar a pensar como realizar escolhas na construção de nossas matrizes de formação. Rapidamente eu destacaria a adoção da perspectiva circular, que indica que cada uma das dimensões da realidade e dos conceitos que construímos para pensá-la afeta o outro num processo contínuo de organização e desorganização; a adoção da perspectiva da interconectividade, que indica que tudo está ligado a tudo e que agir nas áreas de conexão pode produzir efeitos no todo e nas partes simultaneamente; a adoção da perspectiva da autoprodução, que nos remete ao reconhecimento de que somos (nós, nossas organizações e nossas instituições, no sentido amplo) produtores e produtos; a adoção da perspectiva dialética, que nos convida a pensar na existência de contradições e paradoxos; a adoção da perspectiva holística, que reconhece o todo nas partes e as partes no todo; a adoção de uma perspectiva dinâmica, que nos obriga a reconhecer que o aleatório, o incerto e o imprevisível são variáveis objetivas; e, por fim, a adoção da perspectiva da intersubjetividade, que nos convida a reconhecer que fazemos parte de nossos objetos e estes nos constituem como sujeitos.

R.O.I.C.: Em artigo no número 2 desta revista o senhor ressaltou que vivemos “numa sociedade de descolamento entre informação e conhecimento”, uma sociedade onde “o excesso de informação não gera conhecimento em quantidade e qualidade proporcionais”. Como enfrentar o desafio de produzir conhecimento nesse tipo de sociedade e garantir que a cultura siga sendo, também em suas palavras, “a experiência fundante do encontro e da troca”?

J.M.B.: Mais uma vez, não é nada fácil responder à questão, até porque seu enfrentamento depende da adoção de uma perspectiva radicalmente transversal e ampla, ou seja, não se resolve o problema da cultura apenas no campo da cultura. De forma ampla, precisaríamos partir de uma mudança na perspectiva de pensar o desenvolvimento. Se quiserem, uma mudança de paradigma que reintegre as várias dimensões das políticas públicas e a perspectiva do desenvolvimento humano, tão bem definida pelo Banco Mundial como o equilíbrio entre as quatro formas de capital: o capital natural, constituído pela dotação de recursos naturais com que conta um país, um estado, uma comunidade; o capital construído, gerado pelo ser humano, que inclui infra-estrutura, bens de capital, capital financeiro, comercial etc.; o capital humano, determinado pelos graus de nutrição, saúde e educação de
sua população; e o capital social, descoberta recente das ciências do desenvolvimento e entendido como valores e atitudes que garantem a construção de relações de confiança entre os atores sociais de uma sociedade, as atitudes e valores que auxiliam as pessoas a transcender relações conflituosas e competitivas para conformar relações de cooperação e ajuda mútua, ou seja, de reciprocidade, e as atitudes cívicas praticadas que fazem a sociedade mais coesiva e mais do que uma soma de indivíduos.

Acho que, se partirmos dessa perspectiva, poderemos realizar inversões e definir prioridades nos diversos campos da educação, da cultura e da comunicação que ajudariam a enfrentar o paradoxo a que Boaventura Sousa Santos chama de “cheio que nos parece oco”.

R.O.I.C.: O senhor foi um dos pioneiros a capacitar gestores e outros profissionais de cultura em Minas Gerais e no Brasil, um campo caracterizado pela transversalidade e pela fluidez de limites. Como foi “desbravar” esse campo e quais as principais dificuldades e experiências que poderiam ser transmitidas para aqueles que pretendem se iniciar nessa atividade?

J.M.B.: Não são poucas as dificuldades. Eu destacaria, em primeiro lugar, o elogio desmesurado à prática e sua ingênua oposição à teoria. Na área da cultura, ainda é dominante uma espécie de “pragmatismo impregnante”, que faz do bom senso e do ensaio e erro metodologias de trabalho. Criticar e superar tais posturas, ampliando para uma perspectiva mais praxiológica, não é nada fácil, mas extremamente importante. Outra dificuldade e/ou desafio é o enfrentamento da contradição entre o discurso e a prática com a transversalidade. Desenvolvemos mais a retórica do que fundamos uma nova prática. As corporações e as disciplinas ainda são muito operantes e fornecedoras de identidades e seguranças. Romper com isso não é nada fácil. Por fim, o desafio de romper com a idéia de que, para trabalhar com a cultura, basta gostar das artes. É preciso uma forte e dinâmica formação teórico-metodológica para que se transcendam práticas frágeis, auto-referentes e óbvias.

Meus atuais desafios são os de contribuir para uma efetiva ampliação e aprofundamento da visão e das atitudes para com a cultura. Mais do que nunca é preciso associar às iniciativas de inclusão, cidadania e participação nas esferas públicas da cultura a preocupação com o conceito, com a qualidade do que se faz, com a avaliação do que se fez e com os desdobramentos e continuidades. E isso só é possível com formação continuada.



Fonte: Revista Observatório Itaú Cultural, n. 6, 2008

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