domingo, 25 de janeiro de 2009

Análise de Conjuntura - Curso de Verão 2009 - PUC-SP.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Introdução: Três observações metodológicas
1. Análise de Conjuntura é o momento do ver para um agir motivado por valores – julgar. Aqui deixamos de lado esses dois outros momentos – o julgar e o agir – mas sempre os tendo no horizonte. Não é, portanto, uma análise pretensamente isenta ou imparcial: se o valor maior para nós é o Reino de Deus que se constrói na História Humana, cabe perguntar às Ciências do Social aonde essa construção está avançando e aonde (e porque) está emperrada. Assim, a análise dará pistas para tornarmos nossa ação mais eficaz.
2. Só faz sentido analisar a conjuntura (isto é, a realidade em sua configuração atual) quando se tem em mente a estrutura (isto é, a realidade em sua configuração permanente). Esta é a maior dificuldade: não se percebe a estrutura na experiência cotidiana – ela exige, para ser conhecida, um recuo teórico. P. ex: em 1994 e 98 FHC ganhou as eleições no 1º turno, porque as condições de vida do povo melhoraram. Também Lula ganhou em 2006, pela mesma razão. O eleitorado não quer saber se essa melhoria se deve a uma “mágica” econômica (como o endividamento externo do Brasil, com FHC) ou a um período de grande prosperidade mundial (como Lula em 2003-2008). Já os intelectuais estão sempre encontrando motivos pra criticar o governo, seja ele qual for... E é isso que eu vou fazer aqui. Não tenho o menor prazer em criticar o Lula, mas minha visão da estrutura social e econômica mostra que seu governo vai no rumo errado, embora o povo esteja muito contente e confiante nele.
3. No momento da análise, devemos seguir o lema “pessimismo da razão, otimismo da vontade”. No momento da ação, é o contrário: deixar-se revigorar pelo otimismo para enfrentar as dificuldades do real convencidos de que vamos vencer todos os obstáculos.
Vamos focar, nesta análise, a atual crise financeira, que é menos preocupante pelas perdas financeiras e a inevitável recessão agora em escala mundial, do que por sua conjunção com três outras crises: ecológica, de governança e de humanidade.
1. Crise global do capitalismo
Estamos hoje imersos na crise provocada pela “bolha” financeira dos EUA. Diante dela, há duas perguntas-chave:
(i) esta é mais uma crise característica do sistema capitalista, ou estamos diante do esgotamento de sua capacidade de produzir e distribuir riqueza?
(ii) trata-se de corrigir os excessos do capitalismo, ou de lançar as bases de um sistema alternativo?
O economista Delfim Netto, por exemplo, vê nesta crise – como nas outras 46 crises registradas desde 1790 – o mérito de forçar os agentes do sistema capitalista de mercado a corrigirem seus erros e exageros, sob pena de serem substituídos por agentes mais criativos. Segundo seu pensamento, foi a organização social e econômica do mercado que “nos últimos 150 anos trouxe os homens da Idade da Pedra à Idade da Informática. Eles não a inventaram. Ela é produto de uma espécie de seleção natural produzida pelo próprio desenrolar histórico. Foi sendo descoberta pelo homem desde que saiu da África, há 200 mil anos, e foi pensada criticamente pelos gregos há pelo menos 2,5 mil anos”. Sendo conatural ao ser humano, o sistema de mercado não admite alternativa viável. “Todas as formas alternativas gestadas até agora por cérebros peregrinos, e executadas por fanáticos psicopatas aos quais a sociedade descontente entregou em desespero e descuidadamente o poder, terminaram em tragédia. E as que estão por aí infestando a infeliz América Latina, onde a psicopatia é acentuada pela ignorância, não serão exceção à regra: são apenas pontos fora da curva do processo civilizatório.”
Outra perspectiva é aquela que vê no sistema capitalista de mercado um produto da história ocidental. Esboçado nas cidades do norte da Itália desde o século XIII, estruturou-se no “longo” século XVI, provocou a “revolução industrial” no século XVIII e consolidou-se por meio das revoluções política e cultural do século XIX. No século XX atingiu a maturidade, ao mundializar-se pelo processo de globalização. A pergunta, agora, é se ele sobreviverá ao século XXI. Ao longo do tempo, não só assumiu diferentes formas – mercantilista, liberal, imperialista-colonial, de bem-estar social e neoliberal – como transferiu seus pólos (das cidades italianas para Amsterdã, dali para Londres e depois Nova York). Todas essas mudanças foram acompanhadas de graves crises, em geral resolvidas por meio de guerras.
Crise financeira
O abalo financeiro é muito grave. Diz M. Pochmann que “o descolamento dos ganhos financeiros em relação ao sistema produtivo pode ser identificado na comparação do PIB com a quantidade de recursos aplicados em derivativos.” Enquanto o PIB mundial alcançou quase US$ 55 trilhões, em 2007, o volume dos direitos negociados no sistema financeiro mundial chegou a quase US$ 600 trilhões. O mesmo indicador do valor (a moeda expressa em US$) aplica-se a duas realidades muito diferentes: o volume de bens e serviços efetivamente produzidos, e a compra e venda de direitos que são repassados sem que nenhum bem tenha sido produzido (por isso, chamados de derivativos).
“Lucrar sem produzir” é a fase avançada do capitalismo mundial. O sistema capitalista dividiu a humanidade em classes sociais definidas pela posição da pessoa no mercado. Agora as diferenças entre as classes tornaram-se maiores, e a “burguesia mundial” (cujo topo é formado por 70 mil famílias que detém 20% da riqueza total do mundo) não demonstra ser solidária com as demais classes sociais.
Para quem negocia, o importante é auferir o lucro monetário, pouco importando se o objeto da negociação é real ou virtual. Pode-se ganhar dinheiro pelo trabalho ou no jogo de azar, mas há uma diferença: o cassino não produz riqueza. Dado que até pouco antes da crise quem aplicasse seu dinheiro em derivativos obtinha mais lucro do que na produção de riqueza, muitas empresas aplicaram suas reservas no mercado financeiro. Auferiram assim lucros fabulosos – principalmente os bancos, que são os intermediários dessas aplicações. No momento, porém, em que esses títulos perdem sua capacidade de se converter em dinheiro, correm o risco de virarem pó. Isso pode representar a falência de muitas empresas e, consequentemente, desemprego em massa. A ameaça de falência da General Motors é emblemática, por ser uma empresa-símbolo do capitalismo moderno – “o que é bom para a GM é bom para os EUA, e vice-versa”.
Para evitar essa catástrofe financeira, os Bancos Centrais intervieram, aportando dinheiro para se liquidarem os negócios e assim segurarem um mínimo de credibilidade sem a qual desmorona toda a economia monetária (pois o dinheiro só tem valor enquanto se acredita em seu poder de comprar bens ou serviços). É uma medida de emergência, que alivia tensões e permite que se busque outra saída que não seja a guerra. Mas essa medida precisa ser criteriosa para que os jogadores irresponsáveis não sejam reembolsados às custas de quem trabalha, e deve ser acompanhada de uma nova regulação do sistema de mercado. Uma possibilidade é retomar a proposta feita em 1972 pelo prêmio Nobel Tobim, de impor uma taxa de 0,1% a todas as transações financeiras, de modo a reduzir drasticamente os ganhos especulativos (grandes somas aplicadas em curto ou curtíssimo prazos) sem que isso onere substancialmente os investimentos produtivos (de longo prazo). Ou seja, há meios para que seja superada a crise financeira, mas eles exigem sacrifícios. O que se discute, portanto, é sobre quem recairão esses sacrifícios...
2. As externalidades do sistema econômico
O que não tem sido trazido à baila, é aquilo que a teoria econômica liberal classifica como “externalidades”: os efeitos não-econômicos dos processos econômicos regidos pela lógica do lucro capitalista. São externalidades a produção de lixo, o desperdício de matérias-primas e energia, a destruição da biodiversidade, a degradação dos solos e das águas, doenças (p. ex. o teor de enxofre no diesel da Petrobrás, os transgênicos da Monsanto), a exclusão social e a revolta dos oprimidos, entre outras. Por não contabilizar esses custos, o capitalismo conseguiu produzir uma enorme quantidade de riqueza e muitos lucros. O problema, agora, é que, a se manter a mesma lógica econômica, as externalidades se voltarão contra o sistema e o travarão. Os graves problemas ambientais, energéticos e humanos (como a violência e a miséria) estão hoje a apontar que o sistema capitalista de mercado está prestes a esgotar sua capacidade de produzir riqueza.
Fomos acostumados a ver a economia como uma área de conhecimento especializado, sobre a qual só gente com muito estudo (de preferência, numa universidade dos EUA) pode se pronunciar. Esquecemos que a teoria econômica nasceu como Economia Política, ao se separar da Ética (cristã) que até o século 18 ditava as normas de funcionamento do mercado. Foi o pensamento neoliberal, triunfante e dominante, que separou a Economia da Política, ao estabelecer que a Economia é a ciência do funcionamento do mercado, enquanto a Política é a ciência do funcionamento do Estado. (É o que vemos, por exemplo, no governo Lula: a direção da economia nacional foi entregue a um banqueiro do PSDB, como se este fosse um “técnico” – ex-presidente do Banco de Boston nos EUA – e não um “político”). Agora que a crise eclodiu, percebemos o erro de separar a Economia da Política, e vemos mais: temos que alargar o conceito de Economia para incorporar também as relações dos seres humanos com a Terra, e não somente suas relações sociais de produção e distribuição das riquezas.
Cada um desses pontos mereceria uma análise em profundidade, mas nos falta tempo e conhecimento suficiente para tanto. (Hoje, análise de conjuntura requer conhecimento em diferentes áreas das ciências!).
Déficit energético
O produtivismo consumista do capitalismo tem fome de energia. O carvão, para a “revolução industrial”, e mais tarde, a hidroeletricidade e o petróleo em abundância, permitiram a farra consumista do século XX. É verdade que essa farra é gozada somente por um bilhão de pessoas (que consomem 82% das riquezas do mundo), pois outro tanto passa fome e a grande maioria consome apenas o suficiente para sobreviver com dignidade.
Acontece que essas fontes de energia ou não são renováveis (carvão, petróleo, gás) ou são fisicamente limitadas (hidroeletricidade). O mundo se vê diante da alternativa de descobrir novas fontes de energia, ou renunciar ao produtivismo consumista. O bilhão de pessoas que forma a “burguesia mundial” coloca suas esperanças nas novas fontes de energia que sejam renováveis (a agroenergia) e, o quanto possível, “limpas”. A técnica representa para essa classe a única salvação: ela acredita que um dia os cientistas e pesquisadores descobrirão fontes de energia que lhe permita manter o atual padrão de consumo, sem temer o seu esgotamento. Enquanto esse dia não chega, essa classe continuará consumindo vorazmente os recursos da Terra, enquanto as classes subalternas continuarão sonhando em um dia consumir igual... Até que os recursos se esgotem e, perdidas as esperanças, os seres humanos se matem uns aos outros.
Aquecimento global
Hoje não resta dúvida: o mundo caminha para uma nova fase geológica, marcada pelo aquecimento global. As previsões são incertas, porque o tempo da Terra é muito mais longo do que a biografia dos humanos, mas convergem no sentido de afirmar que os regimes climáticos atuais sofrerão grandes mudanças. O degelo da calota polar, o alagamento das zonas litorâneas, a expansão dos desertos (o “rio aéreo” da floresta amazônica pode secar) e a desertificação dos mares são previsíveis: só falta acertar o ano...
Não há dúvida, também, quanto ao fato de ser a espécie humana responsável pelo aquecimento global, embora provavelmente não seja o único fator desse processo.
Crise de governança global.
Usa-se a expressão “governança” para designar a capacidade de se imprimir numa organização os rumos decididos por quem a controla. Fala-se de governança de uma empresa, de um país e, atualmente, de “governança global”. No tempo dos impérios, eram eles que imprimiam os rumos do mundo, por meio de sua ação política, militar, cultural e econômica. A decadência do império estadunidense, aparentemente tão forte depois da derrota soviética na guerra fria, deixou um vazio de poder. A ONU, desgastada pelos EUA, é pouco mais do que um espaço de concertação internacional. Outros organismos especializados – como o FMI, OMC, Banco Mundial – ficaram sob a tutela dos EUA e seus aliados, e não têm força para imprimir ao mundo rumos diferentes daqueles desejados pelo governo dos EUA.
Neste momento de crise global, o mundo carece de governança; carece de instâncias capazes de aplicar as decisões que forem tomadas. Bem ou mal, existe a ONU e seus organismos especializados. Existem também tribunais internacionais e organismos multilaterais, mas seu poder de implementar as decisões é praticamente nulo. P. ex. poderia o FMI impor aos EUA o controle dos gastos públicos e o equilíbrio fiscal, como faz com os países da periferia?
Crise de humanidade
O massacre do povo palestino na Faixa de Gaza, pelo terrorismo de Estado de Israel, não sofreu real oposição dos governos das grandes potências mundiais, que se limitaram a criticar a desproporção da retaliação israelense contra o Hamas, e a aprovar na ONU um cessar-fogo não acatado por Israel. A rejeição à operação militar israelense como matança de inocentes só foi contundente nos espaços sociais e políticos da periferia do poder mundial.
Outros conflitos igualmente desumanos e sangrentos ocorrem na África, mas estes não mobilizam a mídia, pois trata-se de populações pobres, cujas vidas parecem não ter o mesmo valor que dos ricos. Muitas e muitas vidas são eliminadas sem piedade por meninos que compõem as milícias tribais e até exércitos oficiais (a indústria progrediu muito: não é mais necessário ser adulto ou ter um corpo forte para usar uma arma!), enquanto mulheres são violentadas e a ajuda em alimentos é saqueada pelas milícias. Sabe-se que as guerras entre tribos são o principal obstáculo ao desenvolvimento da região e que têm conseqüências mais dramáticas do que as catástrofes naturais (secas, inundação, desertificação) e a corrupção. Essas guerras quase sempre são incentivadas por interesses externos, ligados principalmente à mineração. Hoje, além das antigas empresas européias e estadunidenses, é importante a presença de capitais chineses, principalmente nas obras de infraestrutura para exportação.
Nesse contexto de desumanização, esgarçam-se os laços de solidariedade e difunde-se uma atitude cínica, que transforma todas as desgraças em espetáculo televisivo.
3. Cenários do desenrolar da crise global
Retomo aqui uma análise recente de Marcos Arruda , que diz:
“O sistema centrado no capital, no lucro e no crescimento econômico ilimitado das empresas e da economia material não tem condições intrínsecas para gerar sua própria superação. Enquanto o espaço territorial do planeta permitia sua expansão, ele progrediu, multiplicando e globalizando bens, serviços, mercados e apetite de consumir. Sem ter conseguido realizar o que chama de ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’ para a totalidade dos povos e dos cidadãos e cidadãs da Terra, e tendo depredado ou colocado em risco de morte grande parte dos seus recursos naturais e ecossistemas, esse sistema, promotor de ambição, ganância, voracidade e competição permanente entre pessoas, empresas e nações começa a chegar ao fim. Vivemos um momento da história humana em que uma civilização, com seu ideário cultural e seu modo de organização socioeconômica e política, caminha para a extinção, enquanto do seu interior brotam e se articulam os elementos que sinalizam para uma nova civilização e um novo paradigma de ser humano e de vida no Planeta.
Os riscos de crise global e sistêmica gerados pelo modo atual de organização e operação da economia são compostos por 5 riscos distintos:
(1) risco de colapso do sistema financeiro global; (10 vezes mais dólares do que o valor total dos bens e serviços produzidos no mundo)
(2) risco de explosões sociais de escala continental ou planetária; (migrantes, desempregados, desalojados...)
(3) risco de conflitos bélicos ampliados, com forte potencial de eclosão nuclear e de alcançarem, em algum momento não previsível, o âmbito mundial; (já há “guerras de baixa intensidade” nas periferias urbanas, patrocinadas pela indústria armamentista e pelo tráfico de drogas)
(4) risco de crise ecológica em grande escala, sobretudo pela via do aquecimento global, dada a falta de vontade dos poderosos de tomar medidas radicais para reduzir e mitigar em tempo hábil os diversas consequências que se tornam causas de mais aquecimento: as emissões de gases-estufa, a queima das florestas tropicais, o aumento da temperatura da atmosfera, o degelo das calotas, o aumento do nível e da temperatura dos mares. (desiquilíbrio climático pode crescer em espiral, um fator fazendo os demais aumentarem).
Qualquer um destes riscos pode gerar um desastre de escala planetária; e a simultaneidade de sua eclosão pode ser catastrófica para existência da espécie humana na Terra.
Aí o rei fica nu: o capitalismo revela sua natureza caótica e o risco de as elites apelarem para uma guerra se torna iminente. A guerra tem dois efeitos fulminantes: reativa a economia pela produção e comércio de armamentos, envolvendo uma complexa cadeia produtiva voltada para a morte; e distrai a população da crise sistêmica e da pressão por uma transformação socioeconômica profunda e radical. O capitalismo é um sistema entrópico, que tende à redução de tudo e todos a mercadoria, e à uma exacerbação do uso das energias sem preocupar-se com sua reposição, ou com a resiliência dos sistemas que comanda – do econômico e financeiro ao ecológico. No seu espaço-tempo histórico, cada agente é induzido a disputar contra os outros uma corrida desenfreada atrás da cenoura da felicidade para si próprio à exclusão dos outros. Mas a cenoura está presa à ponta da vara das riquezas materiais, que cada um traz amarrada no dorso. Resulta daí a tendência inevitável do sistema do capital mundial à dissipação da energia e ao caos.
Mas outro cenário faz parte do nosso complexo campo de probabilidades. Cabe aos que percebem essas tendências, e desejam evitar uma debacle civilizatória generalizada, agregar consciência e vontade em teias de relações não hierárquicas, conectadas pela ajuda mútua, o afeto e o acolhimento da alteridade. O fim desta etapa da História pode ser a aurora de um novo tempo, um tempo que abrigue o respeito à vida, à sua diversidade e ao seu movimento em sentido ascendente do sempre mais complexo e espiritual. Um tempo de sintonia da humanidade com os ciclos naturais e com os misteriosos ritmos do Universo.”
Será isso uma utopia? Com certeza, sim, mas é uma utopia que merece muito mais credibilidade do que a utopia do mercado, da tecnologia onipotente, do progresso sem fim, enfim, a utopia incapaz de satisfazer o anseio humano por um mundo em paz. Sem medo da utopia, sem medo de ser feliz, vejamos onde aparecem hoje as alternativas ao capitalismo.
4. Alternativas de superação do capitalismo
Falando para a ONU, no “Painel sobre a crise financeira”, F. Houtart afirma que é preciso mudar a própria lógica econômica e “privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa outra definição da economia: não mais a produção de um valor agregado, fonte de acumulação privada, mas a atividade que assegura as bases da vida material, cultural e espiritual dos seres humanos através do mundo”. A partir desse momento, o mercado servirá de regulador entre a oferta e a procura, em vez gerar lucro para quem tem dinheiro. Serão combatidos o desperdício de matérias primas e energia, e a destruição da biodiversidade e da atmosfera, e serão contabilizadas e consideradas as externalidades ecológicas e sociais. Isto porque, continua o velho mestre, “privilegiar o valor de uso provoca a não mercantilização dos elementos indispensáveis à vida – sementes, água, saúde, educação –; o restabelecimento dos serviços públicos; a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário; a anulação das dívidas odiosas dos Estados do Sul; o estabelecimento de alianças regionais sobre a base de complementaridade e de solidariedade; a criação de moedas regionais; bem como outras medidas em favor da multipolaridade. A crise financeira constitui a ocasião única de pôr estas medidas em aplicação.”
Houtart termina sua fala indicando quem será portador desse projeto: “o novo ator histórico, portador dos projetos alternativos, é hoje plural. São os trabalhadores, os camponeses sem terra, os povos indígenas, as mulheres primeiras vítimas das privatizações, os pobres das cidades, os militantes ecologistas, os migrantes, os intelectuais ligados aos movimentos sociais. A sua consciência de ator coletivo começa a emergir. A convergência das suas organizações está apenas no seu começo e ainda carece frequentemente de ligações políticas. Certos Estados, notadamente na América Latina, já têm criado condições para as alternativas se realizarem. A duração e a intensidade das lutas destes atores sociais dependerá da rigidez do sistema existente e da intransigência dos seus protagonistas.”
Nesses movimentos sociais está sendo gestado um modo de produção e consumo que vem sendo chamado de “ecossocialismo”, “socioeconomia solidária”, e outros nomes. Não vou me estender sobre o tema, que ocuparia um curso inteiro, mas quero esclarecer que institutos sociais, como a economia solidária, a cooperativa e o planejamento estatal podem com vantagem substituir o mercado na regulação da produção, desde que seja respeitado o princípio da subsidiariedade: não assuma a instância maior o que a instância menor é capaz de fazer.
Talvez o pensamento e o exemplo de Ghandi – que faz a ponte entre a racionalidade ocidental e a sabedoria indiana – venha a servir como inspiração para um modo de produção voltado não para o crescimento econômico, mas para o bem-estar de todo ser vivo. Seu ideal humanista de simplicidade de vida, de não-violência (inclusive contra os animais, daí sua prática vegetariana) de autonomia local e regional, pode ser a base de uma nova economia: uma economia que abdica da utopia produtivista do progresso sem fim, para alcançar a utopia da harmonia universal com toda a comunidade de vida – a bela e provocante expressão usada na Carta da Terra para designar o conjunto dos seres viventes, superando o especismo humano.
Será mesmo ingenuidade propor um modo de produção e consumo calcado na simplicidade de Ghandi? Pensando bem, a perda só seria real para os ricos. Para estes é normal ter automóvel, viajar de avião, pagar quem lhes faça serviços domésticos, consumir produtos importados, e muitos outros hábitos que a grande maioria da humanidade desconhece – embora sonhe um dia também usufruir. O PIB mundial é estimado hoje em US$55 trilhões. Estimando-se a população mundial em 6,7 bilhões, a renda anual per capita seria de US$8.200, ou seja, R$1.500 mensais por pessoa. (Uma família de quatro pessoas receberia R$6.000 mensais, se houvesse uma perfeita divisão da renda mundial). Mesmo descontando os impostos para manter os serviços públicos e uma poupança para investimento, essa renda familiar dá muito bem para viver, se for possível contar com serviços públicos eficientes na área da seguridade social, educação e transporte público.
Assim, o que parece ingênuo propor hoje, quando todos anseiam aumentar a produção de bens e serviços, poderá ser uma solução no momento da crise ecológica. A humanidade não poderá continuar se dando ao luxo de transportar (inclusive por avião) mercadorias a longa distância, com um custo ecológico que só se justifica para bens de primeira necessidade impossíveis de serem produzidos localmente. Num sistema de economia solidária fica fora de cogitação economizar no valor monetário se isso implica uma deseconomia ecológica. O rumo é esse: unidades de produção locais, articuladas em rede, com baixo padrão de consumo material (em relação aos parâmetros atuais nos países e setores ricos).
5. E o Brasil nisso tudo?
Se esta análise está correta, as medidas tomadas pelo governo Lula estão na direção contrária à busca de “outro mundo possível”. (Embora ele tenha apoiado a realização do FSM, em Belém, com R$ 120 milhões). O Banco Central não só manteve a elevada taxa de juros – que retira dinheiro da economia real para alimentar o jogo financeiro dos rentistas improdutivos – como o Brasil tomou junto ao FMI um empréstimo de US$30 bilhões para assegurar que os ganhos financeiros aqui realizados retornem ao exterior. O “pacote” de medidas do governo para dar liquidez à economia, é um paliativo incapaz de estancar a especulação financeira e a fuga de divisas. A política macroeconômica de H. Meirelles segue igual ao que era antes da crise: ignora o fracasso da autorregulação do mercado e continua apostando no futuro do sistema de mercado regido pela lógica do lucro e pelo produtivismo. A obsessão por realizar superávits primários (eufemismo que serve para camuflar o déficit fiscal provocado pelo serviço da dívida) continuará sangrando o Tesouro Nacional, que repassa a conta para quem de fato produz e paga impostos.
Além disso, o Presidente continua dando força ao agronegócio e à mineração, sem atentar para os danos que causam ao meio-ambiente. Tudo se passa como se o aumento da produção para a exportação fosse uma solução e não um paliativo que adia a crise econômica mas antecipa a crise ecológica – que é muito mais grave. Até a política industrial vai no sentido de favorecer a indústria automobilística – que continua produzindo carros de passeio como se eles tivessem aonde trafegar nas grandes cidades. Fazendo de conta que a crise é apenas financeira e que o capitalismo encontrará uma solução tecnológica para os problemas de energia e de meio-ambiente, Lula entregará a seu sucessor ou sucessora um país em situação tão precária quanto a que recebeu – com o agravante de um contexto mundial em recessão e não em crescimento, como teve em seus dois mandatos até quatro meses atrás.
Neste momento, ganha enorme importância o próximo Fórum Social Mundial, a realizar-se em Belém do Pará, de 27 a 31 de janeiro. Por ser um espaço privilegiado de reflexão, debates e troca de experiências sobre os caminhos para “um outro mundo possível”, o próximo FSM poderá marcar uma virada histórica. Ele tem anunciado que “outro mundo é possível”, mas só conseguiu demonstrar essa possibilidade em casos espacialmente delimitados. Seu desafio, agora, é elaborar projetos de âmbito realmente global, coerentes com a nova consciência planetária que se difunde pelo mundo.
Ganham importância, também, os movimentos sociais que nascem das bases mas não se limitam à luta por interesses específicos: antes as incluem dentro das grandes lutas pela vida do Planeta. “Pensar globalmente e agir localmente” significa, hoje mais do que antes, ter um pé firme na base local, o outro caminhando para uma articulação regional, e os olhos na articulação nacional, continental e planetária. Neste contexto, o processo de articulção puxado pela Assembléia Popular é um dos fatos mais promissores do momento.

Juiz de Fora, 13 de janeiro de 2009
Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Professor da PUC-Minas e membro de ISER-Assessoria

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