domingo, 25 de janeiro de 2009

Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade, de Dan Baron.

São Paulo: Alfarrabio Editora, 2004.
Formato: 16x32cm
ISBN: 8589147-02-9.
Nº de páginas: 432
Preço: R$ 44,00

Sobre o Analfabetismo Cultural:

dialogando com Dan Baron

Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA

Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo.

A obra Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade, de Dan Baron, trata da necessidade de construção de uma pedagogia e uma estratégia de libertação que possibilite enfrentar os dilemas da práxis transformadora da realidade social. Como escreve a educadora peruana Liliana Galván Ore:

“Este livro é um modelo vivo refletido no compromisso de quem faz o que aconselha e integra sua subjetividade ao mundo exterior, para transformar essa memória sombria e obscura da realidade numa visão luminosa, plena de esperança pelo crescimento e florescimento”. (p. 17)

Este compromisso está presente em cada página do livro. Há também a preocupação do autor em estimular e estabelecer o diálogo – a própria estrutura do livro, com margens amplas e espaços abertos para anotações, foi pensada com este propósito; o autor sugere ainda que o (a) leitor (a) envie seus comentários, dúvidas etc., disponibilizando o seu email: maosdeobra@hotmail.com.

Dan Baron expõe os conceitos e histórias que expressam a sua “busca cultural por uma pedagogia de autodeterminação, acumuladas na lágrima sábia de resistência”. (p. 23) Esta parte autobiográfica – o primeiro livro – retrata os caminhos percorridos e as experiências compartilhadas com os deserdados, os perseguidos e excluídos. Baron nasceu em Londres, em 1957, formado em Literatura inglesa e com pós-graduação em Teatro Político pela Universidade de Oxford, trabalhou com os exilados políticos, sindicatos e sem-tetos ingleses; militou por sete anos na Irlanda do Norte, junto às comunidades marcadas pela guerra; retornando, em 1994, ao País de Gales, atuou como professor de teatro comunitário e arteeducação[1] na Universidade de Glamorgan; também esteve presente na África do Sul pós-apartheid e na Palestina e, a partir de 1998, passou a trabalhar como professor visitante na Universidade do Estado de Santa Catarina e a atuar junto aos sem-terras, os indígenas, ao movimento sindical e universitário, com o objetivo de formar educadores comunitários.

Ele utiliza recursos lingüísticos como pequenos contos e poemas e expõe o seu íntimo, entendido como um conceito pedagógico. O autor se expõe ao leitor como um recurso coerente com o seu projeto político-pedagógico e de maneira que isto “ilumine” a sua “subjetividade como arteeducador e colaborador cultural” e também o seu “papel como participante e coordenador”. (p.25)

Dan Baron apresenta-nos oito experiências culturais coletivas, histórias que compõem uma narrativa das possibilidades de uma prática pedagógica da autodeterminação voltada para as comunidades excluídas dos espaços formais educacionais e, ao mesmo tempo, envolvendo educadores críticos numa perspectiva solidária e democrática. São vivências relatadas não somente através da linguagem escrita, mas também ilustrada por mais de 600 fotos, as quais revelam o convívio e o processo pedagógico com os índios Pataxós, os sem-terra e comunidades da periferia urbana.

A prática pedagógica exposta nesta obra advoga o uso de recursos como o teatro e outras formas de expressão artística. Na medida em que integra outras capacidades sensoriais intrínsecas ao nosso corpo-pensante, extrapolando os limites da linguagem escrita, o autor revoluciona a concepção que geralmente temos sobre o processo de ensino-aprendizagem. Por outro lado, contribui para a superação do conceito de educação restrito às amarras do ensino formal. Como ele afirma: “O ser humano educa e forma, mesmo sem o propósito ou desejo. Participamos o tempo inteiro na formação – ou deformação de nossa humanidade, da humanidade das pessoas com as quais convivemos, e por implicação da humanidade do mundo”. (p. 23)

A leitura deste livro expressa, em primeiro lugar, uma luta íntima que envolve o próprio leitor. De repente, nos vemos diante de fatos inelutáveis que questionam as nossas certezas e expõem a nossa subjetividade. Não é fácil assumirmos que, na verdade, somos analfabetos culturais; é difícil aceitar que todo o conhecimento enciclopédico e os títulos acadêmicos que porventura temos não são garantia de que sejamos culturalmente alfabetizados. Sabemos ler e escrever, podemos conhecer as grandes teorias, dominar os conceitos filosóficos, políticos etc., mas tudo isto, longe de nos aproximar do outro e da nossa própria humanidade, pode, paradoxalmente, ter um efeito inverso e perverso: o distanciamento do mundo real, da mísera realidade que nos cerca; tendemos a tudo racionalizar e nada sentir. O adágio filosófico “Penso, logo existo” sugere uma questão: existir para quê? Para além do pensar, que nos dá a certeza do existir, é preciso sentir que existimos.

Dan Baron revela a necessidade de superarmos os limites da fria racionalidade e de assumirmos uma postura diante do mundo.[2] É preciso sentir, indignar-se, comprometer-se. Os que dominam a palavra escrita iludem-se em equivaler conhecimento formal e alfabetização cultural. O ser humano mais simples cujas condições sócio-econômicas não lhe permitiu freqüentar os bancos universitários tem o que ensinar. Para compreender este fato singelo é mister desmistificar a noção de cultura, predominante e arraigada em nossos corações e mentes, que confunde cultura com conhecimento livresco e formal.

O domínio da cultura escrita e discursiva não é suficiente para que nos alfabetizemos culturalmente. Essa cultura racionalista e eurocêntrica, fator de colonização das nossas mentes e herança introjetada em nosso ser, “nos deixa menos alfabetizados, até ‘analfabetos’, no que se refere às linguagens e performances de nosso corpo, às emoções, aos usos do espaço e aos relacionamentos”. (p. 41) O resultado é a cegueira da consciência, a anulação da subjetividade e da intersubjetividade. Só superando esta cegueira é que teremos condições de estabelecer o diálogo com o outro. Portanto, o comprometimento intelectual, ou seja, o engajamento militante, não nos torna necessariamente melhores nem indica que estejamos alfabetizados culturalmente. Como escreve o autor:

“Precisamos reconhecer que a ausência dessa alfabetização cultural gera conseqüências íntimas, com profundas implicações sociais e políticas. Até que ponto preferimos olhar para as injustiças socioeconômicas ‘externas’ porque é insuportável e aterrorizador olhar para as suas seqüelas da desidentificação em nossas vidas íntimas, muitas das quais não sabemos nomear, interpretar e transformar?” (p. 43)

Para compreender a alfabetização cultural enquanto um objetivo estratégico na construção de uma nova utopia que respeite a subjetividade humana e estabeleça o dialogo entre os diversos territórios e suas manifestações étnicas, de gênero e de classe, precisamos ter claro a definição de cultura proposta pelo autor:

“A cultura é normalmente entendida como a arte produzida para galerias e teatros por gênios criativos em isolamento. Essa crença nos tem desviado e inferiorizado por séculos. Tem sido usada para nos convencer de que a cultura é irrelevante a nossa vida e para nos excluir da construção de idéias e interpretações. Resultou na idéia de que não possuímos técnicas culturais. Mas, sobretudo, essa mentira tem sido usada para nos desencorajar de participar da construção de nossa própria cultura e identidade.

A cultura expressa nossa relação com a produção e reprodução da vida; por isso, o verbo cultivar. Interpreta e define nossa relação econômica, política e social com o mundo. É como nós trabalhamos, comemos, pensamos, nos vestimos, organizamos, , sentimos, escolhemos nossos amores, amamos, nos divertimos, refletirmos, lembramos, falamos, rimos, choramos, transamos, nos vemos, educamos nossas crianças e enterramos nossos mortos. É como entendemos a nós mesmos no mundo e como vivemos este entendimento”. (p. 56)

Esta percepção torna possível compreender como a cultura se encontra profundamente relacionada à “nossa história pessoal, familiar, comunitária, nacional e, hoje, explicitamente global, gravada em nosso corpo, nossas emoções, nossos sentidos e nossas relações – com os vivos, com os mortos e aqueles que ainda não nasceram”. (p. 57)

A alfabetização cultural pressupõe não apenas a compreensão não elitista, da cultura, como também uma atitude pedagógica fundada na autodeterminação. Trata-se de uma pedagogia crítica, uma pedagogia da esperança que possibilite ir além da crítica e da resistência à realidade. É preciso, portanto, incorporar uma nova atitude fundada na compreensão da própria subjetividade e no diálogo com o outro, uma atitude que persiga a coerência entre os meios e os fins, entre o discurso e a prática.

Este não é um processo fácil, pois os valores dominantes nos envolvem o tempo todo. Mesmo os intelectuais críticos e os militantes dos movimentos sociais, partidos etc., encontram-se imbuídos e viciados pela cultura opressiva – muitos querem libertar os oprimidos, mas atuam na mesma perspectiva dos opressores. E, muitas vezes, cegos em seu fanatismo, nem o percebem. Com efeito, os valores predominantes de competição, do vigiar e punir fundados em prêmios e castigos, são muito fortes e impõem barreiras à uma nova atitude solidária e dialógica.

A alfabetização cultural indica o reconhecimento das nossas fraquezas, do “bicho”[3] que habita em nosso ser. Resistir é fundamental, mas também é preciso construir barricadas que sustentem a nova atitude. Como sugere Baron, precisamos

“debater e definir os valores e princípios de libertação que sustentarão e transformarão a resistência. Mas temos que aprender a praticá-los. Como militantes, precisaremos demonstrar respeito pela fragilidade, humanidade, individualidade, prazer, necessidades, conhecimentos e sentimentos de cada pessoa. Precisaremos colaborar, não dirigir. Escutar e perguntar, não pré-julgar. Abrir e dialogar, não discursar. Empatizar e entender, não condenar. Experimentar e participar, não apressar e dominar. Valorizar a resistência (pessoal e coletiva) como conhecimento, não marginalizá-la ou ignorá-la” (pp. 63-64)

Os que agem como se fossem o demiurgo da história, missionários da utopia, apóstolos da razão, em geral, praticam o oposto. O discurso, mesmo quando crítico e pretensamente democrático, é negado pela prática autoritária. Um dos méritos desta obra é precisamente o de estimular a reflexão sobre as nossas fraquezas e incoerências e sobre as possibilidades de agir diferente.

Há livros que lemos e que passam, ainda que momentaneamente fique a impressão de que valeu a pena lê-lo. Com o tempo, perde-se a mais remota lembrança e não restará nem ao menos o registro do título da obra e o nome do seu autor. (Como aqueles esquecidos em nossas estantes e que, um dia, ao acaso, descobrimos que os temos). Há livros que são úteis, que nos ajudam a compreender determinadas teorias, conceitos etc.; que nos ensinam história, sociologia, política etc., e acrescentam-nos algo, ainda que os esqueçamos. Há os que lemos com prazer, como se fosse simplesmente parte do lazer – entre estes incluo, especialmente, a literatura.[4]

Mas há livros que jamais esquecemos, que nos ensinam sobre teorias e conceitos, sobre as áreas do conhecimento humano, que nos comprometem e que permitem-nos a prática dialógica; são livros que nos transformam substancialmente, que nos deixam uma sensação paradoxalmente angustiante e prazerosa – a angústia pela exposição das nossas fraquezas e dos dilemas que nos parecem insolúveis; e o prazer pela alegria de compreender melhor o mundo, os indivíduos e suas relações e a nós mesmos e nosso lugar neste contexto. A obra de Dan Baron tem essa qualidade.

A propósito, devemos registrar o cuidado editorial: este é um daqueles livros que conseguem a proeza de unificar forma e conteúdo numa perspectiva bela e instigante. Isto não ocorre por acaso, mas sim porque tanto o autor quanto os responsáveis pela edição compartilham do mesmo projeto político-pedagógico. Não se trata apenas da publicação de mais um livro, mas de compartilhar experiências que auxiliam os espíritos críticos e inquietos a refletirem sobre a sua práxis e, simultaneamente, terem em mãos uma obra que os ajudam em sua prática educativa transformadora. Uma obra, portanto, recomendável aos que ainda não perderam a esperança e que persistem em mudar de atitude...

Enfermaria
Coluna de Mylton Severiano na Revista Caros Amigos


"O exercício da arte poética é sempre um esforço de auto-superação e, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma."Mário Quintana (1906-1994)

Teia
Capítulo 4 (final) - À flor da pele: Alfabetização Cultural


Resumo: A idéia de teia nasceu de epígrafe de João Cabral de Melo Neto em livro sobre o Afroreggae, ONG de Vigário Geral que educa crianças pela arte: Um Galo sozinho não Tece uma Manhã. Quem nos apresentou o livro e o Afroreggae foi a Elizah, apresentada pelo Bruxo da Fidalga, que também nos apresentou Dan Baron, que nos levou ao Morro da Caixa e ali montou oficina de Alfabetização Cultural, pouco depois que outro fio da teia se alçasse sob a lona do Circo Picolino.

Pura coincidência? Em junho, quando iniciávamos curso de clown com a palhaça florianopolitana Patrícia dos Santos, em Salvador o circense Anselmo Serrat buscava alguém para editar o texto do Almanaque Picolino, em comemoração aos dezoito anos de sua escola de circo. Queria algo no estilo do Almanaque Brasil de Cultura Popular, revista de bordo da TAM criada pelo colega de hospício Elifas Andreato. Pronto: quem cuidava do visual do Almanaque Picolino era a amiga Virgínia Fujiwara, que nos indicou justamente na condição de editor de texto do Almanaque do Elifas.

Como uma teia se amplia: a Picolino, após mil sacrifícios, envolve trezentas pessoas – treinadores, voluntários e centenas de alunos, boa parte crianças “de rua”; e sua história, ao chegar a Florianópolis, incita gente a fundar também aqui uma escola de artes circenses.

De volta a Floripa. Morro da Caixa. Padre Vilson é referência aqui. O militante cultural Dan Baron e Vilson ficaram amigos certa noite de 2003; Dan ofereceu jantar de solidariedade a um “juiz progressista vítima de perseguição”, pai do colega de hospício Fernando Evangelista e também amigo de Vilson. Dan diz que amizade é “contagiosa”.

No começo de 2004, Dan e Manoela, a Mano, promoveram no morro a oficina Alfabetização Cultural, de sexta a domingo. Na igreja de Vilson. Cinqüenta pessoas. Os do morro hospedaram os da cidade. A oficina mexe com a gente. Numa seqüência, devemos escolher como par a pessoa mais diferente de nós; que lhe tomemos as mãos e acariciemos, examinemos, simulemos o gesto de lavá-las e enxugá-las; aí, trocamos de lugar. Depois, fechamos os olhos e exploramos com as mãos o rosto um do outro. Noutra cena, em grupos de cinco, sentamos no chão e cada pessoa põe na roda um objeto seu e fala do significado; uma jovem mulher chora ao falar de sua aliança – “quando minha mãe morreu, minha irmã tirou a aliança do dedo da mãe e me deu, disse que fui eu quem cuidou dela até o fim”. Dançamos, cantamos, teatralizamos conceitos e preconceitos.

O domingo começa com o preparo do pão. Um a um, vamos à mesa e doamos nossa cota: amassar, mais farinha, mais óleo, amassar, dar depoimento. Os do morro se abrem mais. Teco conta como drenaram e calçaram ruas com as próprias mãos. Maria relembra que catavam lenha para cozinhar. Alessandra narra a saga da família até ela, primeira a entrar no curso superior. O pão seria partilhado (“corpo de Cristo”) na missa noturna, antes das despedidas. Inesquecível o apelo emocionado do mulato aos brancos do centro: “Agora, quando encontrar a gente, vê se pelo menos cumprimenta”. Dan nos diz que sempre se preocupou com a contradição entre barricada-dos-excluídos e fortaleza-dos-incluídos:

“Naquela igreja, os ‘analfabetos’ ensinaram como ler e escrever o mundo majoritário. E a oficina alcançou um raro diálogo íntimo e lúdico entre esses dois mundos subjetivos. Ouvimos a comunidade negra, lemos e trocamos com o corpo histórias infaláveis, escrevemos nossos preconceitos inconscientes através da dança-narrativa. Assim, o ‘negro do morro’ e o ‘branco do centro’ vivenciaram uma empatia que revelou que uma nova solidariedade, descolonizada, recíproca, pode ser possível.”

Dan acaba de lançar Alfabetização Cultural – A Luta Íntima por uma Nova Humanidade (quer? livraria@alfarrabio.com.br). São seus referenciais Paulo Freire e Augusto Boal. No livro, ilustrado, Dan expõe “propostas para uma pedagogia de autodeterminação baseada na arteducação”. Nas páginas finais, fotos da oficina no morro; numa, contracenam a Maria que catava lenha e a arteducadora Katia. Negra e branca. Na legenda, Dan transcreveu o que disse Maria na sessão de despedida, sobre o momento em que Katia lhe tomou as mãos para “lavá-las”: Senti que tua mão esfriou de repente; e o que disse Katia, no depoimento mais contundente e lancinante, resumo da tomada de consciência do “branco do centro” em relação ao “negro do morro”: Foi como se eu estivesse lavando minha alma da culpa pelos que foram escravizados por meus antepassados.

Estendam-se e liguem-se teias por esses brasis, porque um galo sozinho não tece uma manhã.

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